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Jair Stadler, da Santa Casa de Palmeira, mostra pacote de feijão doado ao hospital: “Até dinheiro para a comida tem sido difícil” | Daniel Castellani/Gazeta do Povo
Jair Stadler, da Santa Casa de Palmeira, mostra pacote de feijão doado ao hospital: “Até dinheiro para a comida tem sido difícil”| Foto: Daniel Castellani/Gazeta do Povo

Entrevista

Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice-presidente da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco).

Defensora de que os preços dos procedimentos de saúde sejam iguais tanto na rede pública quanto na privada, a professora Ligia Bahia acredita que sistemas europeus são modelos a serem seguidos e que, no Brasil, o acesso à saúde deve ser um direito e não um "consumo de luxo". "O problema não é o [ex-vice-presidente] José de Alencar ter sido muito bem atendido e sobrevivido por anos. O problema são pessoas que morrem de câncer sem sequer serem diagnosticadas", diz.

As Santas Casas afirmam que o repasse do governo federal cobre somente 60% dos custos. Como vê esse problema?

É uma contabilidade muito rasa. O SUS faz um monte de investimentos nesses hospitais. Se as Santas Casas pagassem previdência social e encargos, que não pagam, como seria? Não quero dizer com isso que eles estão roubando ou ganham muito. Mas acho que esses hospitais deveriam ser melhor remunerados ao fazer a opção por rede exclusiva do SUS.

É importante realizar a regulamentação dos preços dos procedimentos de saúde?

Fundamental. Os preços devem ser equivalentes. Aumentar o valor do procedimento feito ao hospital universitário mais diminuir o do hospital privado. Muitos (hospitais) por aí se dizem ‘filantrópicos’. Filantrópico de quem? A Abrasco defende que o hospital filantrópico seja exclusivo do SUS. Senão, que exerça seu capital na rede privada.

A regulamentação da Emenda 29 (que prevê mais recursos orçamentárias para a saúde) é o grande argumento dos gestores e de muitos estados, mas está parada há 11 anos. Só a regulamentação seria suficiente?

Não. Vamos ter mais R$ 10 bilhões com a emenda, isso é só o que temos com subsídio fiscal do Imposto de Renda. A área econômica é contra a regulamentação, acha absurdo colocar mais dinheiro na saúde. Não temos um presidente da República que tenha saúde como prioridade, como foi o caso da Michelle Bachelet (presidente do Chile), do Barack Obama ou seja lá quem for.

Você afirmou que o SUS é hoje "um sistema para pobres". O que isso significa?

Defendo um sistema universal para todos, como os europeus. No Reino Unido, a mulher do primeiro ministro vai ter neném na mesma maternidade que todos têm. No sistema de saúde inglês não há nada separado para o exército. Para nós isso é inconcebível. Claro que é uma sociedade mais igualitária e que não tem essa diferença de renda que temos aqui, mas um dia não foi. Temos de começar a estranhar que todas as nossas autoridades sejam atendidas no sistema privado. (IR)

Atendimento

Hospitais socorrem os vizinhos

As Santas Casas de Jales, em São Paulo, e Cruz das Almas, na Bahia, enfrentam situações parecida: com cerca de 50 mil habitantes cada uma, são os únicos hospitais da cidade. Porém tem de atender à demanda dos municípios vizinhos. O reflexo disso é um déficit mensal de R$ 250 mil. O valor obtido com consultas particulares e planos de saúde é baixo, já que 70% dos atendimentos são pelo SUS.

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À beira de um colapso. Esse é o termo escolhido por especialistas e administradores para definir a situação das Santas Casas no país. Responsáveis por 40% dos atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS), esses hospitais atuam hoje com um déficit em caixa da ordem de R$ 5 bilhões. Últimos dados da Con­­federação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Enti­­dades Filan­­trópicas (CMB) mostram que o custo das Santas Casas foi de cerca de R$12 bi­­lhões em 2009, contra um re­­passe de pouco mais de R$ 7 bi­­lhões pelo SUS. Em geral, as verbas cobrem somente 60% dos gastos. Em pequenas cidades, a situação é ainda mais complicada, diz a confederação. En­­quanto em Santas Casas de referência (geralmente, em ci­­dades maiores) paga-se R$ 65 para um procedimento que custa R$ 100, em hospitais pe­­que­­nos o valor é de meio a meio entre SUS e hospital. "À medida que a complexidade é menor, o SUS paga me­­nos. Os hospitais interioranos têm sofrido muito", diz o superintendente da CMB, José Luiz Spigolon. De acordo com ele, reuniões realizadas pela confederação em estados do Nor­­deste, por exemplo, apontaram que, se não houver mu­­dança na forma de remuneração, metade tende a fechar as portas nos próximos dois anos.

Para sobreviver, Santas Ca­­sas de municípios como Pal­­meira, na Região Central do estado, fazem campanhas com a comunidade e aceitam até doa­­ções de feijão e batatinha – é comum agricultores chegarem à recepção e deixarem os mantimentos. "Como é cidade do interior, volta e meia passa algum produtor e pergunta se precisamos de um saco de feijão, se queremos batatinha. Cos­­tumamos aceitar tudo, já que até dinheiro para a comida tem sido difícil", conta o administrador Jair Agottani Stadler.

Contratualização

Ele reclama de um sistema implementado pelo SUS chamado contratualização, que tem uma série de exigências que precisam ser cumpridas para que o hospital receba a verba integral do mês – R$ 50 mil, no caso das Santas Casas do interior. As falhas acarretam em perda de pontos e diminuição dos recursos. "Todo mês somos chamados pela Regional de Ponta Grossa para justificar cada ponto. Tem coisas absurdas. Temos uma caixa de reclamações e, se ela não é aberta todo o mês, os pontos caem. Isso é uma hipocrisia do governo. Tudo aumentando e eles tirando [a verba]. Não tem muito o que dizer", desabafa.

De acordo com o Ministério da Saúde, esse sistema visa me­­lhorar a administração e o controle de gastos. O órgão informa ainda que o repasse de recursos para as Santas Casas no país cresceu 63% desde 2004.

Hoje, a Santa Casa de Pal­­meira recebe uma verba mensal de R$ 33 mil do governo federal, que cobre apenas a folha de pagamento dos 40 funcionários – os 25 médicos atuam de forma autônoma. "A nossa arrecadação como particular é pouca, arrecada R$ 10 mil. A prefeitura ajuda com R$ 4,5 mil, o que não chega a ser verba, e sim uma ‘esmola’. Ajuda, mas é muito pou­­co", afirma Stadler. O hospital acabou pedindo socorro. Fez um projeto para torná-lo autossustentável e pe­­diu ajuda da comunidade, promovendo bingos e campanhas para doação de remédios. O dinheiro servirá para comprar um aparelho de raio X, que está sem funcionar desde o ano passado.

Em Irati, no Centro-Sul do estado, a Santa Casa acumula dívidas de R$ 800 mil e sofre por ser o único hospital de referência na região, o que ocasiona desestruturação da rede básica de saúde dos nove municípios atendidos. Segundo o administrador Claudemir Andrighi, por não receberem um primeiro atendimento de qualidade, os pacientes chegam em casos críticos, que demandam internações longas e uso de unidades de terapia intensiva (UTIs). Com isso, o doente se torna caro e o dinheiro recebido do SUS não cobre os gastos.

Tabela

O presidente da CMB, José Reinaldo Nogueira de Oliveira Júnior, afirma que a tabela para procedimentos e consultas do SUS está defasada. En­­quanto o governo paga R$ 10 por uma consulta médica, operadoras de saúde remuneram R$ 35. Partos, que custam em média R$ 700, têm repasse de R$ 300. "Por ma­is competente que seja a administração, há déficit. Muitas Santas Casas têm dilapidado o seu patrimônio para continuar o atendimento. Só não estão na UTI porque não tem vaga".

Para a professora da Uni­versidade Federal do Rio de Ja­­neiro e vice-presidente da As­­sociação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Ligia Bahia, uma das soluções para melhorar os valores da ta­­bela SUS é fazer uma regulamentação de preços. Segundo ela, não é viável que o governo repasse R$ 2 mil para uma internação enquanto hospitais privados cobram até R$ 15 mil. "O preço do privado deve ser achatado. Esses valores são completamente desfavoráveis à melhoria da saúde pública", analisa.

Colaborou Mariana Scoz

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