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 | Jonathan Campos/Gazeta do Povo
| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

Era 20 de janeiro deste ano – Dia do Far­macêutico – quando a curitibana Fran­celise Bridi Cavessin, de 31 anos, recebeu uma ligação que iria mudar a sua vida. Do outro lado da linha, o recrutador do escritório brasileiro da ONG Médicos sem Fronteiras (MSF) a convidava a fazer parte de um projeto da organização na cidade de Mon, no nordeste da Índia. A oportunidade não caiu do céu. Francelise vinha lutando por essa chance há quatro anos, quando descobriu a grandeza do trabalho do MSF em um site na internet.

Na última quarta-feira, a farmacêutica voltou para Curitiba depois de participar seis meses do projeto que está reestruturando o acesso à saúde de uma população indiana negligenciada pelo governo do país. Além do aprendizado único, Fran­celise trouxe consigo a certeza de que todos são capazes de fazer alguma coisa para melhorar a vida das pessoas. Basta querer. A seguir, ela compartilha um pouco da sua experiência com a Gazeta do Povo.

Como você começou a se interessar por trabalhos voluntários?

Foi durante a faculdade. Na UEPG [Universidade Estadual de Ponta Grossa, onde ela estudou], temos muito contato com o pessoal rural, com a população mais desassistida, principalmente fazendo estágio. E ali começou a me despertar a vontade de fazer trabalhos voluntários, de fazer alguma coisa a mais.

Foi então que surgiu a vontade de participar do Médicos Sem Fronteiras?

Não, porque eu ainda não sabia da organização. Eu descobri o MSF em 2008, em um site na internet. Quando li do que se tratava, eu sabia que era aquilo que estava faltando na minha vida. Foi algo imediato.

E foi fácil demonstrar o seu interesse para eles?

Quando eu fiquei sabendo da organização comecei uma busca muito intensa para conquistar isso, porque não é fácil, não. Eu fiz duas tentativas para conseguir entrar que não deram certo. Na primeira vez, tinha certeza de que ia conseguir, porque atendia a todos os requisitos. Já tinha até trabalhado voluntariamente numa área remota, com a população ribeirinha de Porto Velho (RO). Mas eles ligaram e disseram que eu não estava preparada ainda porque não tinha conhecimento sobre algumas doenças tropicais, o que para eles é muito importante. Aí eu aceitei. Um tempo depois mandei meu currículo novamente, mas não havia nenhuma vaga em aberto.

O primeiro não do MSF desestimulou você?

Não, nunca desisti. Hoje, vejo que eles precisam ter critérios porque lá, quando se está no projeto, você vê que não é qualquer um que fica. Por isso, a seleção tem que ser rigorosa. Só que o meu currículo ficou no banco de dados deles e sabia que um dia eles podiam reavaliar ele de novo. Então, decidi largar o meu trabalho, largar tudo, para me dedicar a um mestrado sobre doenças tropicais. Foi uma mudança realmente grande, mas trocar os meus empregos pelo mestrado foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida.

E como foi que surgiu a oportunidade de você participar do seu primeiro projeto no MSF?

Defendi minha dissertação em novembro do ano passado, sabendo que haveria uma seleção para farmacêutico um mês depois, em dezembro. Fiz a seleção e aguardei. No dia 20 de janeiro, que é o Dia do Farmacêutico ainda por cima, eles me ligaram dizendo que tinham encontrado um projeto para mim na Índia e perguntaram se eu toparia. Foi o dia mais feliz da minha vida.

E para onde você foi enviada?

Fui para a cidade de Mom, que fica no estado de Nagaland, no nordeste da Índia. É uma região pobre, entre montanhas, e fica próxima das divisas com Mianmar e China. A cidade tem 250 mil habitantes e um único hospital.

Como o MSF vive lá?

A gente vive como o povo vive. Não tinha chuveiro, passei seis meses da minha vida tomando banho de caneca. Morava nas casas da organização, mas tinha o mesmo padrão de vida que todo mundo na cidade. Comíamos a mesma comida que eles, que as mulheres da vila cozinhavam para a gente. Cheguei a enfrentar dois terremotos e não sabia o que fazer na hora. Não foi fácil.

E qual era o projeto em que você trabalhou?

Como a cidade só tem um hospital, a proposta era reconstruir esse hospital que estava completamente desabilitado. A função dos expatriados, que é quem vai para lá, como eu, no caso, é capacitar o staff nacional [população local que atua no projeto] para que, quando a gente saia, eles sejam capazes de dar continuidade a esse trabalho e manter o hospital funcionando.

Como é a saúde da população em Mom?

Eles são bem doentes. Eles não são desnutridos, como na África, porque lá eles têm solo, casa, têm o que comer. Mas o acesso à saúde é zero. Os médicos que iam de outros lugares para lá cobravam tanto para atender quanto para fornecer medicamento. Antes, no hospital, as pessoas compartilhavam uma seringa, porque tinha uma seringa apenas para usar em todos os pacientes. A chegada do MSF no local foi o único contato com um serviço de saúde totalmente gratuito que eles passaram a receber. Eles nunca tiveram isso antes. Eles morriam porque não tinha como cuidar, como tratar. Eles são muito afetados pela malária, há muitos problemas com grávidas e crianças.

E qual é a postura do governo indiano quanto a isso?

É uma negligência muito grande. Nunca tem nada para eles, a população é totalmente desassistida. Na verdade, o governo do estado quer ajudar, mas o problema é o governo maior, que não repassa esse dinheiro para a saúde da população de Nagaland. O governo não os reconhece como parte do território e eles padecem muito.

Nem mesmo com a presença do Médicos sem Fronteiras o governo se manifesta?

Daí sim. Quando o MSF se instala no local, o governo faz um acordo com a organização para dar continuidade ao projeto. Se eles não derem continuidade não faz sentido toda essa capacitação, porque não vai mudar em nada depois que sairmos de lá. Na farmácia do hospital, 95% dos medicamentos são fornecidos pelo MSF e apenas 5% pelo governo. Isso é muito pouco. Nos próximos anos, o governo tem que começar a assumir essa responsabilidade, ir aos poucos invertendo o quadro e assumir totalmente quando a organização sair de lá.

Qual é o maior contraste entre a situação da saúde no Brasil e na região da Índia em que você estava?

O acesso à saúde. Claro que aqui temos problemas gigantescos com a saúde, mas lá é muito mais catastrófico. Aqui a população tem acesso a medicamento, ao Sistema Único de Saúde. Não podemos ignorar as demoras nos atendimentos, as filas gigantes, mas é mais fácil conseguir uma receita ou um medicamento, porque o governo fornece tratamento para várias doenças gratuitamente. Eles não tinham isso lá e acharam que foi um milagre quando os Médicos sem Fronteira chegaram e passaram a oferecer tudo isso de graça também.

E daqui para frente você pretende voltar a participar de projetos do MSF?

Sim, com certeza. Foi tudo muito gratificante porque aquilo que eu busquei, que era usar o meu trabalho em prol da saúde da população, eu consegui cumprir. Meu trabalho foi indireto. Eu assistia uma população que nem sabia quem eu era, mas quando via eles indo para casa com o medicamento, valia por tudo. Agora eu tenho que esperar aparecer outra oportunidade. É preciso um tempo, a organização pede isso. Mas não quero mais parar, porque o resultado vale a pena.

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