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No Cemitério Municipal Santa Cândida, quatro pessoas mortas e não identificadas foram sepultadas juntas | Adriano Ribeiro / Gazeta do Povo
No Cemitério Municipal Santa Cândida, quatro pessoas mortas e não identificadas foram sepultadas juntas| Foto: Adriano Ribeiro / Gazeta do Povo
  • Grupo de funcionários trabalha no sepultamento. Ao invés da tristeza, há descontração durante a cerimônia
  • Indigente é colocado em uma das gavetas do cemitério
  • Indigentes sem nome tornam-se números
  • Em menos de 20 minutos, trabalhadores encerram o serviço e partem para o almoço
  • Resta apenas um funcionário para cuidar dos últimos detalhes
  • Sepultamento concluído: rápido e impessoal

Curitiba. Cemitério Municipal Santa Cândida. O enterro marcado para começar às 9h30 atrasa mais de uma hora. Não há muito movimento no local e o clima é sereno, no entanto, o céu cinzento e o princípio de chuva parecem querer relembrar que este é um dia de tristeza. No mesmo lugar e em uma mesma cerimônia quatro pessoas serão sepultadas.

As duas vans que carregam os corpos chegam ao cemitério às 10h50. Apenas os funcionários do local aguardam a chegada do veículo da funerária. Estas pessoas não morreram juntas, não têm parentesco uma com outra, mas estão unidas por um fator em comum: todas são pessoas não identificadas. Homens e mulheres que morrem em hospitais e vias públicas e não carregam nenhum documento que pode dizer quem elas são. Quando nenhum familiar aparece para reconhecer as vítimas e reclamar os corpos, acabam enterradas como indigentes.

Com a ajuda dos funcionários, os quatro caixões são retirados das vans e deixados em frente ao bloco oito do gaveteiro do cemitério. Depois de apenas sete minutos, os trabalhadores da funerária deixam o local. Sete pessoas trabalham no sepultamento. Os caixões são colocados nas gavetas. Um trabalhador prepara a argamassa e coloca quatro tijolos na base do compartimento. Um pouco mais de massa e a tampa já pode ser colocada. Simples e rápido.

Para os desconhecidos, não existe qualquer tipo de homenagem. Do local de morte, vão para o Instituto Médico Legal (IML). Depois de cerca de um mês sem serem identificados, partem direto para o cemitério. Nenhum velório é organizado. Os sepultamentos não duram muito tempo, afinal outros serviços precisam ser realizados e as funerárias não recebem nada para transportar as pessoas não identificadas.

Não há lágrimas, não há discurso e ninguém traz flores ou esboça uma oração. Neste dia, o papo, na realidade, é sobre o almoço que se aproxima. "Todo mundo trouxe marmita?", pergunta um dos funcionários. Quando outro, mais experiente, erra ao posicionar um dos tijolos na gaveta, surgem as brincadeiras. "Já está muito velho. Daqui a pouco te coloco aí dentro (na gaveta)", diz um companheiro de trabalho.

Em 17 minutos, os quatro corpos estão sepultados. O grupo de trabalhadores parte para o almoço às 11h14 e o que resta para os indigentes são apenas os números colados na tampa das quatro gavetas: 103849; 103850; 103851 e 103852. A partir daquele momento, os desconhecidos se resumem a estes algarismos.

Mais desconhecidos

Todo este processo frio e impessoal já se repetiu 57 vezes no primeiro semestre de 2010, de acordo com dados fornecidos pelo Serviço Funerário Municipal (SFM) em Curitiba, o que mostra que a quantidade de pessoas que morrem e não são identificadas tem crescido na capital.

No ano são quase 20 desconhecidos enterrados por mês, índice que supera o registrado em 2009, quando, em média, 13 indigentes foram atendidos mensalmente pelo SFM, totalizando 156 ao longo de todo o ano. Os números do ano passado, por sua vez, já representavam um aumento de 34% em relação a 2008, em que 116 corpos de desconhecidos foram sepultados.

Conhecer a história destas pessoas é difícil, no entanto, é possível traçar um perfil de parte das vítimas. O diretor do Instituto Médico Legal, Antônio Caccia, afirma que a maioria dos desconhecidos é de jovens, entre 18 e 25 anos, que morreram de forma violenta. "São homens vítimas de ferimentos por arma de fogo ou arma branca. Nos casos em que a polícia consegue apurar algo sobre a pessoa, percebe-se que muitos deles têm algum tipo de envolvimento com o tráfico de drogas", diz o diretor do órgão público.

Etapas

Quando os não identificados chegam ao IML, são realizados alguns procedimentos para se tentar chegar ao nome da pessoa. O corpo passa pelo setor de necropapiloscopia, onde são retiradas as impressões digitais da vítima. "Enviamos isso para o Instituto de Identificação. Em média, eles conseguem identificar, por meio das digitais, cerca de 20% das pessoas que chegam como desconhecidas", relata Caccia.

Também são coletadas amostras de sangue para uma eventual identificação posterior por DNA. Todos os dados da vítima que são coletados ganham um número e ficam armazenados no arquivo do IML, caso algum familiar apareça em busca do desconhecido, o que é muito raro, segundo o diretor do instituto. Depois de conseguir autorização judicial, os corpos ficam à disposição do Serviço Funerário. Em média, antes de serem enterrados, eles permanecem de 20 a 30 dias no IML.

Passado este período, o SFM faz uma nova ficha para o indigente e designa uma das funerárias aptas a prestar serviços na cidade para realizar o sepultamento dos desconhecidos. A diretora de serviços do SFM, Jucélia Jesus Damázio, explica que eles podem ser encaminhados para os quatro cemitérios municipais de Curitiba – Santa Cândida, São Francisco de Paula, Água Verde e Boqueirão – ou para o cemitério particular Parque São Pedro, onde a Prefeitura possui uma área reservada aos não identificados.

O destino final dos indigentes é o ossário do cemitério, para onde os ossos das vítimas são encaminhados depois que se passam três anos do sepultamento. Neste local - assim como os nomes - origens e lembranças dos desconhecidos perdem-se, como se nunca tivessem existido.

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