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“Leio por um monte de gente. Tenho muito orgulho de ser reconhecido como leitor. Quando o livro é bom, fico triste na hora em que está acabando.” - João Ênio Miler, aposentado | Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo
“Leio por um monte de gente. Tenho muito orgulho de ser reconhecido como leitor. Quando o livro é bom, fico triste na hora em que está acabando.” - João Ênio Miler, aposentado| Foto: Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo

Um banquinho, um livro e um guardião da literatura

O aposentado João Ênio Miler, 69 anos, complementa o orçamento fazendo horas como guardião no Alto da XV, em Curitiba. Ali, tornou-se figura conhecida. Do cenário em que trabalha faz parte uma praça ao fundo, uma guarita, um banquinho e o João sentado, sempre com um livro na mão. Quem passa se admira – ainda mais se espia o que esse homem lê. Dia desses, devorava O cemitério de Praga, de Umberto Eco, a quem considera um gênio. "Ele acaba de me levar a Praga", diz. Antes de Eco, não desgrudava de O homem que venceu Auschwitz, de Denis Avey e Rob Broomby, um livro sofisticado para esse leitor de poucos estudos, mas que compensou as dificuldades na prática da leitura de uma forma simples – lendo, lendo muito, lendo por anos a fio.

João é um brasileiro típico. Natural de Palmas, no Sul do Paraná, nasceu em família de pouco apreço com os estudos. Foi na escola que sua história com a leitura começou. Se bem se lembra, ainda guri, interpretou d. Pedro I no teatrinho da escola. Foi seu primeiro contato com o mundo da cultura, o qual passou a desejar. Quase na mesma época, leu Robinson Crusoé, de Daniel Dafoe. Foi o que bastou para que deixasse os gibis, até então sua única leitura, para se tornar, nos dizeres antigos, um "rato de biblioteca".

Ruptura

A vida se encarregou de interromper essa história. João começou a trabalhar cedo, o que o distanciou das letras. Durante quase toda sua vida liderou o setor de pavimentação da prefeitura. Olhava o nome das ruas. Tinha curiosidade em saber quem teriam sido aqueles barões e marechais. O menino que foi d. Pedro e que cedo conhecera Crusoé entendeu que era hora de voltar. Fosse um catedrático, seria referência em Jorge Amado, um de seus preferidos.

Hoje, se alguém fala no João, fala em livros. Ele calcula ter em casa mais de 200. É o que ganha de presente dos parentes. Com alguns deles fala do que lê. E é o conselheiro da família na hora que alguém precisa escolher uma obra. Ou mesmo para contá-la, dando continuidade ao costume brasileiríssimo da tradição oral.

"Sinto ciúme. Ganho de presente. Empresto e às vezes vai e não volta. Acho que as pessoas me dão por culpa, porque elas não leem. Dizem ‘me conte, porque não vou ler mesmo’. Leio por um monte de gente. Tenho muito orgulho de ser reconhecido como leitor. Quando o livro é bom, fico triste na hora em que está acabando", diz João, um leitor em público no Alto da XV.

José Carlos Fernandes

O brasileiro lê, em média, quatro livros ao ano e a Bíblia e os livros didáticos são as obras mais acessadas. Os dados fazem parte da pesquisa Retratos da Leitura, divulgada ontem pelo Instituto Pró-Livro. O levantamento, que entrevistou cerca de 5 mil pessoas, revela que o índice de leitura é menor em relação ao estudo anterior, de 2007, quando a média era de 4,7 livros lidos ao ano. No entanto, o instituto não considera que houve queda na leitura porque a metodologia aplicada passou por mudanças.

A presidente do Instituto, Karine Pansa, diz que as perguntas da pesquisa foram aperfeiçoadas e se apresentou uma definição mais clara do que é livro. Ela encara de forma positiva o re­­sultado no contexto do Brasil, um país em desenvolvimento com pouco incentivo na leitura ao longo da história. Porém, reconhece que é preciso avançar. Nos países europeus, segundo a presidente, a média de leitura é de oito a dez livros ao ano.

A queda do preço do livro, o aumento do poder aquisitivo do brasileiro e o acesso às tecnologias são alguns dos fatores que contribuíram para estimular a leitura, segundo Karine. Do total de quatro livros lidos ao ano pelos brasileiros, 2,1 livros são lidos inteiros e dois em partes.

A professora Elisa Dalla Bona, da Universidade Fede­­ral do Paraná (UFPR), concorda que o índice de leitura melhorou nos últimos anos, entretanto, salienta que ainda é baixo e questiona a qualidade do que se lê. "Leitor é aquele que tem diversificação e um repertório de leituras", diz.

A situação no país é preocupante, segundo a professora, porque não há políticas públicas de incentivo à leitura. Ela elogia a estrutura de Curitiba, onde há pelo menos uma biblioteca por bairro, mas chama atenção para o fato de que a maioria procura o espaço para fazer pesquisas escolares, o que indica que a leitura não é por prazer.

Neste contexto, o papel do educador ganha importância. A pesquisa indica que os professores passaram de segundo para primeiro lugar na indicação de leitura. Antes, o papel era ocupado pelas mães.

Lazer

Obras religiosas são as mais procuradas

A pesquisa Retratos da Leitura indicou que os livros religiosos são os mais lidos no Brasil por iniciativa própria. Nos últimos três meses da pesquisa, os entrevistados tinham lido em média 1,05 livro por opção. Desse grupo, 34% das pessoas escolheram ler obras religiosas (16% a Bíblia e 18% outros livros de caráter religioso). Em seguida apareciam os livros de literatura (32%) e demais gêneros de leitura.

O resultado é visto com preocupação por Elisa Dalla Bona, professora de Educação da UFPR. Os livros religiosos podem ser importantes, mas o leque de obras, afirma, não pode se reduzir apenas a uma fonte de informação. "Quem não amplia o leque de leituras terá dificuldade de conhecer a si mesmo e encontrará sempre as mesmas respostas." A acessibilidade aos livros religiosos pode explicar em parte essa escolha.

Também os ambientes nos quais normalmente o gosto pela leitura é adquirido não estariam cumprindo seu papel. "As famílias mais pobres não compram livros por que não têm poder aquisitivo para isso. Muitas das mais ricas, infelizmente, não dão tanta importância para o hábito de ler. A escola, em crise, leva as pessoas a lerem apenas por obrigação e destrói o prazer de ler. Sobram as instâncias religiosas, quase as únicas que estimulam a leitura."

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