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Um corpo estendido no chão: homicídio em zona nobre altera percepção da violência | Aliocha Maurício
Um corpo estendido no chão: homicídio em zona nobre altera percepção da violência| Foto: Aliocha Maurício

Opinião

A era das incertezas

José Carlos Fernandes

Um detalhe quase pitoresco ajuda a explicar a reação dos curitibanos ao "crime da Praça do Japão", no início deste mês. Apenas a bordo das linhas "Pinheirinho" e "Santa Cândida-Capão Raso", a cada dia, 157 mil pessoas passam pelo local. Some-se a esse número os aproximados 11 mil moradores do Batel – bairro ao qual "moralmente" pertence essa que é a mais afortunada praça de Curitiba. O local é símbolo da riqueza da capital, reduto cosmopolita, exemplo de convivência urbana. Motivo de orgulho – serve de cenário para fotos de casamento, o que o torna candidato a espaço afetivo.

Não à toa, ano passado, a instalação ali de um terminal de ônibus gerou pronta reação: o desejo dos moradores foi respeitado pela prefeitura, que adequou o projeto a uma estação tubo fina e comprida na frente do Colégio Santa Terezinha, na Avenida Sete de Setembro, a poucos passos da praça. Foi exatamente ali que aconteceu o homicídio.

Não há semelhanças entre a Praça do Japão e a Vila Osternack – incluindo a geração de afeto junto aos moradores. Nesse sentido, o Osternack e suas ocupações irregulares vizinhas – as vilas 23 de Agosto e Campo Cerrado – são os que os antropólogos chamam de "não lugar". Ficam numa zona sujeita a alagamentos, do outro lado da linha do trem – o Ramal Ferroviário Engenheiro Bley – e são invisíveis até para os vizinhos: pode-se dizer que os mais de 110 mil moradores do Sítio Cercado têm o Osternack como uma espécie de abstração.

Desde o projeto Bairro Novo, na década de 1990, o Sítio é o mais bem sucedido loteamento popular da capital. Esse mérito, contudo, não inclui as vilas pobres que ficaram nas piores zonas geográficas, as rebarbas da antiga grameira que deu origem à região. O Osternack é exemplo do que seria essa "periferia da periferia" – daí o apelido de "Osternackistão", numa referência às conturbadas ex-repúblicas soviéticas. Os índices de criminalidade no reduto são de se beliscar três vezes.

Os demais índices também. A população do "complexo Osternack" é jovem, ficou pouquíssimos anos na escola – não mais do que quatro –, o que a condena ao trabalho não assalariado e reafirma sua vulnerabilidade diante do tráfico. Sem uma reviravolta educacional, estará condenada a si mesma. Os moradores de Curitiba não sabem em minúcias dos dados da região, mas por certo podem intuí-los. Provavelmente, não se sentem capazes de mudá-los, o que explica muita coisa.

A indiferença aparente a uma chacina ocorrida numa zona pobre e pouco escolarizada não é um privilégio local. Trata-se de um fenômeno universal. Pior – um paradoxo universal. O sociólogo francês Robert Castel – um dos tantos a se deter sobre o assunto – gostava de dizer algo como "nunca houve uma sociedade tão segura quanto a de hoje", algo como "uma sociedade de veludo". Basta pensar nas câmeras, nas cercas elétricas, nos seguranças carecas, nos condomínios fechados, na logística de proteção dos aeroportos, na ciência de prevenção do terrorismo, nos satélites. A lista segue no crescente. Castel tinha razão. Tem segurança para esbanjar.

Ao mesmo tempo, essa mesma sociedade nunca se sentiu tão temerosa, desconfiada dos métodos que cria com tanto esmero. Quanto mais se protege do medo, mais o reinventa, gerando um processo esquizofrênico. Nossa convivência com pessoas diferentes é limitada, o que reduz nossa capacidade de conciliação. Erguemos muros, mas não conseguimos nos livrar da sensação de que o outro se tornou ameaçador. Não o conhecemos mais – como nos tempos em que as relações de vizinhança, de etnia, de grupo religioso, de quarteirão e quetais regulavam nossos comportamentos. No lugar da comunidade, reina o indivíduo, sozinho, anônimo, cujas intenções deixam sempre uma sombra de dúvida.

A sensação de que algo foge do controle é agravada pela escala descomunal das cidades. Elas são díspares – podem ser modernas, conectadas e sedutoras, como na Praça do Japão; arcaicas, fragmentadas e assustadoras, como no Osternack. Próximas, são distantes. O medo é a resposta à consciência de que um mundo tão desigual pode se encontrar de repente.

O sociólogo anglo-polonês Zygmunt Bauman, em seus estudos sobre cidade, medo e violência, destaca que as cidades se tornaram lugares repletos de desconhecidos. Essa convivência é fonte de angústia. Para não ser enredado na paranoia, resta ao morador da cidade buscar acordos de convivência, a rigor, nem sempre muito civilizados. Territórios são demarcados, e o pânico se instala quando esses pactos são desrespeitados.

No inconsciente, um homicídio na Praça do Japão pode soar como descumprimento de um trato de convivência urbana. Daí a explosão do medo e da indignação. A chacina do Osternack não goza do mesmo status. O medo, diz Bauman, é o nome que damos à incerteza. Quando não sabemos o que motivou um crime, por exemplo, ou por que ocorreu onde ocorreu, mais ameaçador nos parece. É quase risível. Uma chacina no Osternack parece inteligível. Um homicídio na Praça do Japão, não.

Quando o cidadão se sente impotente...

Ao lado da banalização do crime, o fatalismo – essa brasileiríssima concepção de que a tristeza e a alegria são uma página do destino

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Duas tragédias, duas medidas. De um lado, o comentado caso do homicídio de Kelvin Grieger, jovem de 22 anos alvejado com vários disparos após uma discussão na Praça do Japão, reduto do bairro Água Verde identificado financeira e culturalmente com o vizinho Batel. Foi na tarde do dia 5 de agosto, uma terça-feira, mas continua vivo nas bocas. De outro, a chacina na Vila Osternack, no Sítio Cercado, do final de junho. Ali, durante a noite, foram assassinadas quatro pessoas da mesma família. Tinham entre 14 e 33 anos – levaram tiros na cabeça. O assunto parece encerrado.

INFOGRÁFICO: Indiferença com o que acontece em outro bairro está relacionado aos índices socias e à visibilidade

No Osternack – "Oster­­­nackistão", como costumam brincar os moradores do Sítio Cercado, onde a vila se encontra – apenas uma criança de 5 anos sobreviveu. Ela correu para a rua e acionou a Polícia Militar com a ajuda de um taxista que a encontrou no caminho. O caso foi tratado como um corriqueiro acerto de contas entre pessoas envolvidas com tráfico de drogas. O homicídio da Praça do Japão – também um acerto de contas – em vez de caso isolado tem sido apontado como sinal do descontrole do mundo do crime, uma ultrapassagem de divisas.

À primeira vista, uma "sociologia de botequim" é usada como fiel da balança, não sem prejuízos à análise. Um crime – ainda que uma chacina que não poupou crianças e adolescentes – soa natural a uma região empobrecida como o Osternack. Mas não combina com a Praça do Japão, área de Curitiba que acumula todos os ganhos possíveis de urbanidade (veja comparação no infográfico. Ali, nunca falta gente correndo na ciclovia da Avenida Sete de Setembro. Tem quitanda ao lado de magazines, como nas áreas cosmopolitas de Buenos Aires ou Paris. O PIB que desafia os índices nacionais.

"A classe social atrai para si um conjunto de elementos. O baixo grau de escolaridade, o lugar na cidade, tudo isso faz com que crimes em uma região como o Osternack sejam menos comoventes", observa o sociólogo Pedro Bodê, do Núcleo de Estudos da violência da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Some-se a essa relação instantânea – e não menos enganosa – entre pobreza e violência o destaque e a forma com que um e outro caso foi tratado pelos meios de comunicação. Não é preciso nenhum estudo acadêmico para resolver essa equação. O homicídio da Praça do Japão pode um dia ser o equivalente curitibano do "crime do restaurante chinês", ocorrido na São Paulo da década de 1930, descrito em livro pelo historiador Boris Fausto.

Informados

O psicólogo social Márcio Cesar Ferraciolli, da UFPR, recorre à quantidade de informação para explicar a aparente insensibilidade dos curitibanos diante da chacina do Osternack. "Há um excesso notícias sobre os crimes nas regiões pobres. O público acaba naturalizando esses episódios e banaliza a violência", observa o estudioso, não sem antes deixar de lembrar os mecanismos da subjetividade e do psiquismo. Em miúdos – as pessoas constroem na história o conceito de certo e errado. Não é inato. "Nós aprendemos a analisar fatos como esse de forma cultural, de acordo com o que vivenciamos". Explica muita coisa.

Pedro Bodê completa o raciocínio. Lembra que há uma tentativa das pessoas menos favorecidas em reverter o quadro de banalização. Os moradores da periferia querem ser vistos por meio de outros filtros culturais. "A sociedade tende a achar que só quem morre assassinado na periferia é bandido. E não é assim. Os moradores da região protestam contra esse olhar. Queimam ônibus e fecham ruas para serem olhadas. "E uma resposta, embora muitos chamem a isso de baderna e vandalismo", comenta.

Quanto à suposta indiferença, o sociólogo repudia análises rasteiras. Crimes geram reações diferentes e isso é um fato que pede observação. Pode haver uma explosão indignada. Mas nem sempre, o que não significa exatamente o que parece. "As pessoas têm medo tanto de se expor quanto da violência em si. O que a gente entende como ser insensível muitas vezes pode ser apenas o medo, a impossibilidade de se manifestar", conclui Bodê.

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