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A primavera de 2004 foi perdida para os funcionários e internos do Educandário São Francisco, em Piraquara, a mais tradicional unidade do estado para adolescentes em conflito com a lei. Na noite do dia 23 de setembro, depois de abrir uma cratera na parede que ligava os blocos A e B, os rebelados fizeram reféns e algumas exigências, seguidas de grossa pancadaria e da tragédia anunciada. A lotação era de 243 onde cabiam 150. O aperto teria favorecido um acerto de contas entre gangues rivais. Foram cinco horas de fogo nos colchões e duelo de estuques. A guerra dos meninos acabou na madrugada do dia 24 com saldo de sete mortes e cinco feridos, o que faz dela a mais sangrenta do gênero na história do Paraná.

A situação da família das vítimas ainda não foi totalmente resolvida (leia matéria ao lado). O assunto saiu da custódia do Instituto de Ação Social do Paraná (Iasp), órgão que administra o educandário. Na Procuradoria Geral do Estado a informação é que o assunto extrapola as indenizações. "Os pais e parentes têm sua dose de responsabilidade. Não é só um problema do estado", diz o procurador Sérgio Botto de Lacerda, para quem a tragédia é resultado da falta de estrutura das unidades em que adolescentes cumpriam medidas socioeducativas no início da década. "Foi uma matança entre eles. Alguns meninos eram bastante perigosos", destaca.

Dois anos depois, o episódio ainda causa desconforto em boa parte dos 230 funcionários do educandário. Trata-se de uma turma incomum. Mais de 50% oscila entre 20 e 30 anos de serviços prestados ao Instituto de Ação Social do Paraná (Iasp). A meia-idade nem sempre ajuda numa atividade que exige fôlego de gato para lidar com garotos que carregam nas costas histórias de abandono familiar, violência e envolvimento precoce com o crime. O tempo de casa tem outro agravante: a velha-guarda do São Francisco criou vínculos – o que incluía os meninos mortos. Daí poucos terem passado impunes pelo episódio.

Depois da rebelião, multiplicou a incidência de depressão e pedidos de licença, provocando a primeira grande mudança no educandário – os servidores se sentaram no divã para falar do que os afligia. "Fiquei com sentimento de culpa. Me questionava se tinha feito tudo o que podia por eles", confidencia a coordenadora técnica e assistente social Ariolete Todesco, 50 anos. Ela acompanhava de perto o caso de dois dos garotos assassinados. Trabalha com adolescentes há duas décadas e meia, é articulada e divertida, mas não consegue esconder o sofrimento causado pelo acontecido de 2004.

O coordenador administrativo Indalécio Martins, 50, outra testemunha do 23 de setembro, já tinha visto o perigo debaixo de suas barbas. Mas nenhuma deixou tantos estragos quanto aquela – da qual fala a meia-voz. "É um barril de pólvora. Quem garante que não pode acontecer de novo?", sussurra o técnico responsável pelo funcionamento da casa onde se consome por mês 1,8 tonelada de carne; 1,5 tonelada de arroz; 1,5 tonelada de feijão. Ele é o homem do dia-a-dia, do prato na mesa, e percebeu melhor do que ninguém o impacto da rebelião na imaginação dos garotos. Na época, muitos ficaram com medo de sair das celas, não queriam ir às aulas, encaramujaram. O pavor, contudo, não impediu o episódio de se tornar uma vitória dos internos e uma derrota do corpo técnico. Eis a questão.

O dia seguinte dos educadores teve de ser de reconquista da autoridade perdida – sem a qual não há como suportar uma jornada de oito horas atrás de uma grade de ferro. Aumentou o volume de atividades, mudaram-se os procedimentos, as reivindicações junto ao poder público se tornaram mais agressivas. Afinal, além da resistência dos garotos, havia o dedo em riste de quem passava pela poeirenta Avenida Brasília de Piraquara. A cinqüentenária São Francisco, que desde o início dos anos 90, quando surgiu o Estatuto da Criança e do Adolescente

(ECA), tentava se livrar da imagem de unidade correcional, uma Febem à paranaense, passou a ser lembrada também por seus sete mortos.

Thelma Alves de Oliveira, 51, diretora do Iasp, e Solimar de Gouveia, 43, diretora do São Francisco, rejeitam a hipótese de que a noite da primavera de 2004 serviu de barganha para conseguir investimentos no setor. Mas concordam que o apressou. O projeto de reformas nas 17 unidades do estado, onde estão abrigados 700 crianças e adolescentes, saiu do papel, assim como a construção de cinco novas unidades. Dentro de um mês e meio serão inauguradas casas em Ponta Grossa, Laranjeiras e Cascavel, com capacidade para 70 internos cada, e duas outras entram em construção nas cidades de Piraquara e Maringá. Juntos, os cinco novos endereços vão abrigar 350 meninos, em prédios que em nada se parecem a um pavilhão penitenciário, como o educandário.

Chegou-se a pensar em dar descanso ao velho São Francisco cansado de guerra. Até porque a moderna unidade de Piraquara vai morar ao lado e havia projeto de uma nova obra em São José dos Pinhais, por ora, de molho. Só que não vai ser dessa vez. Dois anos depois da rebelião que chocou o estado, a mais problemática unidade de cumprimento de medidas socioeducativas do Paraná permanece de portas abertas. Literalmente, como lembra Solimar. De todas as novidades, a mais surpreendente é que a um dia obscura Escola Correcional Queiroz Filho está deixando de ser uma fortaleza medieval. ONGs, igrejas, voluntários, a própria imprensa ganham passaporte para pisar no local que não aceitou virar a casa dos mortos.

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