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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Eu podia jurar que 2014 seria regado a Lupicínio Rodrigues, ano de centenário de nascimento do compositor gaúcho. Pois entrou areia. Pouco se escreveu a respeito, como uma procura nos sites pode confirmar. Quinquilharias na rede não faltam, é claro. Falta é uma boa palavra sobre o inventor da expressão dor-de-cotovelo, autor de standards como Felicidade e Nunca.

Descobri Lupicínio como a maioria das pessoas da minha geração – em meio ao revival que mereceu depois de sua morte prematura, em 1974. Ele tinha apenas 59 anos e muito cartão-ponto para bater na boemia. Uma pena. Gal, Bethânia, Caetano, Paulinho da Viola, Zizi Possi o regravaram, com gosto, como se estivessem possuídos por Dalva de Oliveira e Linda Batista. O esforço foi coroado com o fascículo dedicado ao artista numa coleção de MPB da Editora Abril, à qual devemos justiça.

Piá de bosta, como se dizia, não cansava de ouvir o sotaque megacarioca de Nora Ney na faixa Aves daninhas. E me orgulho de ter aprendido Vingança inteirinha de cor. É a minha preferida. Pode chamar de cafona – eu aguento. O fato é que não confidenciaria isso naquela época, temendo a gozação. Os demais deviam fazer o mesmo, reduzindo a nova onda em torno de Lupi, como era chamado, a um culto das catacumbas. Penso que assim permanece, sendo cantarolado em madrugadas de fossa. Aposto um dedo que noite passada alguém se debulhou ao som de Nervos de aço. Só os travesseiros conhecem a verdade.

Eu era aluno da Escola de Belas Artes, em 1990, quando a artista plástica Teca Sandrini, nossa professora, não só confidenciou que amava Lupicínio Rodrigues como saiu com uma frase categoria estampido de revólver. "No tempo da canção dor-de-cotovelo as pessoas iam menos ao analista." Referia-se à admissão das dores de amor, à coragem de se reconhecer como um rastejante da paixão. Depois de cantar Loucura, era pentear o cabelo e ir à luta, como Lupi fez depois de levar um "pé" de Inás e Mercedes, caninanas ainda não catalogadas pelo Butantã.

Nunca mais ouvi Lupicínio sem dar razão a Teca. E sem lembrar do jornalista Ruy Castro. Em seu livro Chega de saudade, Ruy usa de comparação para traduzir o que representou o sopro moderno trazido pela bossa nova, a partir de 1958. Diz que, nas composições da velha guarda, o mundo era povoado de mulheres fatais, que pareciam carregar uma adaga presa à cinta-liga. Só restava aos amantes feridos encher a cara num bar. Com a bossa essas vamps foram substituídas por garotas douradas a caminho do mar, namoradas por rapagões que tocavam violão.

Por ocasião da morte de Tom Jobim, em 1994, Ruy sugeriu que a bossa nova inverteu raciocínios. Propôs afirmativas como "eu sei que vou te amar" numa cultura dada a negativas, do quilate de "não, eu não posso lembrar que te amei" – numa alusão a Caminhemos, Herivelto Martins. Lupicínio, ao lado de Martins, ocupa tribuna de honra entre os propagadores de derrotas sentimentais. "Ele não gostava de um happy end", resumiu o jornalista Nelson Motta, por ocasião do centenário.

Reli dia desses uma das crônicas que Lupi assinou no jornal Última Hora, em Porto Alegre, entre 1963 e 1964. Nela, justificava-se dizendo que o bem e o mal são companheiros inseparáveis, daí abusar das devassas amorosas, onipresentes em suas 150 canções gravadas – sendo que 20 se converteram em clássicos. Poucos chegaram a tanto. Sinal de que muitos se identificavam com o que ele compunha.

Ao ler sua defesa, lembrei de um dos males dos nosso tempo – a infantilização. Estamos cada vez mais tolos e depilados, feito bebês. Até santinho de igreja ganhou cara de bicho de pelúcia, reparou? A radiografia sentimental enxuta e precisa das letras de Lupicínio é muito adulta para o momento que se revela dos mais escapistas da história. Acho que vai demorar a acontecer uma outra florada do compositor de Cadeira vazia. Muito menos em 2015, quando se comemoram os 50 anos da Jovem Guarda – se o Roberto Carlos deixar.

Cá entre nós, estamos mais para as conversas da Candinha do que para a ressaca moral de Esses moços. Adoro Quero que vá tudo pro inferno e Mar de rosas. Saio chacoalhando, a letra gruda, aumenta a serotonina. Dá para entender o sucesso daquelas "jovens tardes de domingo", mas não sem espanto. De repente, o país que tinha passado pela intensidade do samba-canção e pela fineza da bossa nova parecia estar numa daquelas regressões de idade promovidas pelo padre Quevedo. A Jovem Guarda equivalia a uma "conversa ingênua de namorados no portão" – como bem definiu um dos desgarrados do movimento, o hoje cult Odair José. Ele mandou parar de tomar a pílula e foi tirar a amada daquele lugar. Suspeito que era dos que ouviam Lupi em segredo. Salvação, irmãos.

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