Para eles, o jogo acabou
O italiano Adriano Bonaldi, 89 anos, poderia ser um daqueles personagens das novelas de Benedito Ruy Barbosa. Em 1951, depois de sofrer as agruras da Segunda Grande Guerra, despediu-se da mãe, em Verona, e veio tentar a sorte no Brasil. Por conta das coisas da vida, acabou em Curitiba, numa pensão da Rua do Rosário com a Saldanha Marinho, administrada pelo conterrâneo Pedro Falce famoso funerário da época.
O resto é puro folhetim Bonaldi se apaixonou por Rosa Maria, uma das netas de seu senhorio e com ela se casou. Em menos de uma década, quando o conto de fadas já tinha virado rotina, o forasteiro teve sua grande surpresa. Desenhista, projetista, músico, pintor, poeta um herdeiro nato de Da Vinci , o novo parente serviu como uma luva para resolver um problema dos Falce: administrar os sobrados que a família foi acumulando na Saldanha. Virou um compromisso de sangue, já repassado para um de seus filhos.
Semana passada, os curitibanos acordaram com uma nova expressão em seu vocabulário "potencial construtivo". Tudo indica que a palavrinha vai acompanhar a população por bastante tempo, à revelia das dificuldades para entender o que de fato significa. Os motivos são públicos: o tal do "potencial construtivo" vai financiar a reforma do Clube Atlético Paranaense e garantir a presença da capital do estado entre as cidades-sede da Copa 2014. Final feliz? Não. A alegria do povo se tornou a tristeza para cerca de 900 proprietários de imóveis antigos cadastrados pela prefeitura como "unidades de interesse de preservação", as UIPs. Desde a década de 1980, quando o município firmou sua política de patrimônio histórico, esse grupo é beneficiário direto da verba do "potencial" uma quirera que até pouco tempo não ultrapassava R$ 5 milhões em média a cada ano. Na divisão das cabeças, para alguns a verba mal dá para a pintura das fachadas.
Menos mal. Mas de uns tempos para cá, quem tem casario com paredes centenárias destruídas por goteiras e janelas de madeira para restaurar sente no bolso o preço desse suposto privilégio: há obrigações demais a cumprir, benefícios de menos para custeá-las e a possibilidade de ter de dividir o bolo com setores alhures.
Por partes
A novela do "potencial construtivo" começou de fato em maio do ano passado, quando o então prefeito Beto Richa assinou o Decreto 689, apontado como o golpe de misericórdia nas já frágeis políticas de patrimônio da capital. O documento declarou as creches "unidades especiais de interesse de preservação", as Uieps, transformando-as em primas ricas das UIPs.
A palavrinha "especial", acrescida à sigla, explica tudo. As Uieps contam com atenção desdobrada do poder público. Em tese, pode ser um prédio, um parque, uma igreja necessitada da mediação do poder público para agilizar o repasse de dinheiro. A criação da Uiep não é apenas legal, é uma estratégia moderna de gestão urbana. A 689, nesse sentido, é exemplar: só ano passado captou R$ 10 milhões para criar 9.365 vagas nas creches, saneando a demanda local, que é quase um escândalo.
O problema é que para vestir um santo, a prefeitura estaria desvestindo outro. O recurso do potencial construtivo, nascido para financiar o patrimônio, foi transferido para a construção de espaços para a infância e agora para colocar Curitiba na berlinda do campeonato mundial. O fim parece justificar os meios. Além do mais, poucos arriscariam levantar a voz contra a nobreza dessas intenções. Daí o silêncio em torno do decreto e o medo do pacato cidadão de ser linchado ao questionar a legitimidade do possível repasse para o Clube Atlético.
Conceito difícil
O imbróglio começa com a dificuldade geral em entender o mecanismo do "potencial construtivo", tarefa para um Garry Kasparov. Não causa espanto que muitos desistam de decifrá-lo, deixando a casa cair. O preço da ignorância é que a discussão não ganha força, reduzindo-se a um pepino dos que foram brindados com o título de UIP. Eles em geral se descabelam, ameaçam tocar fogo no sótão e fazer greve de fome na porta do Ippuc, sem sucesso.
Cada zona da cidade (ZR 1, 2, 3...) permite construir um número "x" de andares nos lotes. Imóveis de 1900 e antigamente são geralmente baixos, mas o terreno onde estão poderia abrigar espigões. Um cálculo aponta qual seria o "potencial construtivo" do terreno. Pronto: o que não foi ocupado pode ser vendido para um construtor interessado em erguer um prédio mais alto do que o permitido, noutro canto de CWB.
Numa explicação bem rasteira, o "potencial construtivo" é a venda de um terreno que não existe para alguém que vai burlar a lei, fazendo mais andares do que pode, lucranco com isso, claro. Parece absurdo, mas é legítimo. O gestor público pode usar dessas artimanhas para gerar dinheiro e salvar da demolição casas velhas, já que ajudam a contar a história da cidade.
O modelo deu tão certo que, deu no que deu: acabou sendo apropriado para resolver problemas de atendimento social, esportivo e turístico. Em tese, nenhum mal. Mas vigora a lei do mais fraco. Para comprar "potencial construtivo" de um imóvel declarado UIP, o investidor interessado tem de bater cartão em cartórios, perder tempo com papelada e ainda pagar mais caro pelas cotas. Para comprar de uma Uiep seja de uma creche ou, quiçá, de um estádio de futebol basta ir à prefeitura, acertar em prestações, como se tivesse adquirindo uma máquina de lavar roupa nas Casas Bahia. Não é difícil adivinhar qual é a preferência do cliente.
Há ainda outro elemento. A prefeitura diz que a cota de uma Uiep é mais cara, garantindo as UIPs. Teoria. Na prática, com os redutores, os R$ 350 o metro quadrado chegam a sair mais em conta dos que os R$ 200 da UIP. A pá de cal vem com a sugestão do poder público, nas guias internas da prefeitura, para que se obedeça ao Decreto 689, comprando potencial de creche. Só um mecenas do Renascimento não teria dúvidas sobre o que fazer.
A essa altura, o leitor atento deve estar questionando por que cargas dágua a prefeitura de Curitiba já apontada como modelo nacional em gestão de imóveis culturais e históricos estaria roendo a corda. É uma boa pergunta. O fato é que o Departamento do Patrimônio do Ippuc passa por um apagamento desde a morte da arquiteta Milna Leone, em 2001. Projetos como o da preservação do casario italiano do Umbará simplesmente desapareceram, para citar um caso. Em paralelo, decretos como o 689 mostram que o poder público está agindo como um investidor e se tornando ele mesmo concorrente do patrimônio que deveria preservar.
Não é assunto fácil. Em conversa com a reportagem, o engenheiro civil Luiz Fernando Jamur, 49 anos, secretário municipal de Governo, esmiuçou toda a legislação 9801, 9802 e 9803, de 2000. Ele defende que as Uieps não vampirizam as UIPs porque cada uma corre "em pista própria". Ou seja, são políticas paralelas e não concorrentes. "Todas as áreas são atendidas. As regras de transferência de potencial impedem a competição predatória. Há um conselho para decidir o que é permitido."
Em paralelo, lembra que o mercado cresceu 43% em dois anos, aquecendo o mercado de compra e venda de "potencial construtivo". "Nunca foi tão propício..." Com a notícia de que os R$ 90 milhões que serão revertidos para o Atlético sairão do potencial, a orelha de quem cuida de patrimônio caiu. É um setor complicado, como lembra Jamur: imóveis antigos têm muitos herdeiros. A cidade não pode parar por causa deles.
Do outro lado do ringue, os quixotes estrilam. "A lei das UIPs é frágil demais. Só vejo uma saída: a prefeitura teria de ser mais generosa nos benefícios aos proprietários e menos rigorosa quando os donos precisam fazer pequenas alterações", opina o arquiteto Salvador Gnoato, professor da PUCPR e idealizador do projeto que incluiu nas UIPS uma leva de casas modernistas. Jamur é rápido no gatilho. "O patrimônio já está tutelado. Mas há regras. Tem de cumprir para ganhar benefícios. Falta empenho dos proprietários."
A arquiteta Giceli Portela já se acostumou a ouvir esse argumento. Seu escritório localizado na belíssima Casa Vilanova Artigas, na Rua da Paz restaurou sete casas com dinheiro do potencial construtivo. Desde o Decreto 689, pena para vender míseras cotas. Esta semana, com a notícia sobre o Atlético, um construtor desistiu de investir em UIPs. Quer economizar.
A propósito, Giceli acaba de receber licença para vender potencial da Catedral Metropolitana de Curitiba. Serão 4.560m2 ou aproximados R$ 900 mil (se conseguir vender a pelo menos R$ 200 a cota). Fosse declarada uma Uiep, a igreja-mãe da cidade conseguiria fácil os R$ 8 milhões necessários para sua reforma total. Mas o benefício não foi concedido. A faxina no Atlético vai custar 11 vezes mais. Resta dizer: uma esmolinha pelo amor de Deus.
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