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O italiano Adriano Bonaldi e as três casas da Saldanha Marinho das quais cuida há 40 anos: “Cadê o interesse?” | Marcelo Elias/Gazeta do Povo
O italiano Adriano Bonaldi e as três casas da Saldanha Marinho das quais cuida há 40 anos: “Cadê o interesse?”| Foto: Marcelo Elias/Gazeta do Povo

Para eles, o jogo acabou

O italiano Adriano Bonaldi, 89 anos, poderia ser um daqueles personagens das novelas de Benedito Ruy Barbosa. Em 1951, depois de sofrer as agruras da Segunda Gran­de Guerra, despediu-se da mãe, em Verona, e veio tentar a sorte no Brasil. Por conta das coisas da vida, acabou em Curitiba, numa pensão da Rua do Rosário com a Saldanha Marinho, administrada pelo conterrâneo Pedro Falce – famoso funerário da época.

O resto é puro folhetim – Bo­­naldi se apaixonou por Rosa Maria, uma das netas de seu senhorio e com ela se casou. Em menos de uma década, quando o conto de fadas já tinha virado rotina, o forasteiro teve sua grande surpresa. Desenhista, projetista, músico, pintor, poeta – um herdeiro nato de Da Vinci –, o novo parente serviu como uma luva para resolver um problema dos Falce: administrar os sobrados que a família foi acumulando na Saldanha. Virou um compromisso de sangue, já repassado para um de seus filhos.

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Semana passada, os curitibanos acordaram com uma nova expressão em seu vocabulário – "potencial construtivo". Tudo indica que a palavrinha vai acompanhar a população por bastante tempo, à revelia das dificuldades para entender o que de fato significa. Os motivos são públicos: o tal do "potencial construtivo" vai financiar a re­­forma do Clube Atlético Para­naen­­se e garantir a presença da capital do estado entre as cidades-sede da Copa 2014. Final fe­­liz? Não. A alegria do povo se tornou a tristeza para cerca de 900 proprietários de imóveis antigos cadastrados pela prefeitura como "unidades de interesse de preservação", as UIPs. Desde a década de 1980, quando o município firmou sua política de patrimônio histórico, esse grupo é beneficiário direto da verba do "potencial" – uma quirera que até pouco tempo não ultrapassava R$ 5 milhões em média a cada ano. Na divisão das cabeças, para alguns a verba mal dá para a pintura das fachadas.

Menos mal. Mas de uns tempos para cá, quem tem casario com paredes centenárias destruídas por goteiras e janelas de madeira para restaurar sente no bolso o preço desse suposto privilégio: há obrigações demais a cumprir, benefícios de menos para custeá-las e a possibilidade de ter de dividir o bolo com setores alhures.

Por partes

A novela do "potencial construtivo" começou de fato em maio do ano passado, quando o então prefeito Beto Richa assinou o Decreto 689, apontado como o golpe de misericórdia nas já frágeis políticas de patrimônio da capital. O documento declarou as creches "unidades especiais de interesse de preservação", as Uieps, transformando-as em primas ricas das UIPs.

A palavrinha "especial", acres­­cida à sigla, explica tudo. As Uieps contam com atenção desdobrada do poder público. Em tese, pode ser um prédio, um parque, uma igreja necessitada da mediação do poder público para agilizar o repasse de dinheiro. A criação da Uiep não é apenas legal, é uma estratégia mo­­der­na de gestão urbana. A 689, nesse sentido, é exemplar: só ano passado captou R$ 10 milhões para criar 9.365 vagas nas creches, saneando a demanda local, que é quase um escândalo.

O problema é que para vestir um santo, a prefeitura estaria desvestindo outro. O recurso do potencial construtivo, nascido para financiar o patrimônio, foi transferido para a construção de espaços para a infância e agora para colocar Curitiba na berlinda do campeonato mundial. O fim parece justificar os meios. Além do mais, poucos arriscariam levantar a voz contra a nobreza dessas intenções. Daí o silêncio em torno do decreto e o medo do pacato cidadão de ser linchado ao questionar a legitimidade do possível repasse para o Clube Atlético.

Conceito difícil

O imbróglio começa com a dificuldade geral em entender o mecanismo do "potencial construtivo", tarefa para um Garry Kasparov. Não causa espanto que muitos desistam de decifrá-lo, deixando a casa cair. O preço da ignorância é que a discussão não ganha força, reduzindo-se a um pepino dos que foram brindados com o título de UIP. Eles em geral se descabelam, ameaçam tocar fogo no sótão e fazer greve de fome na porta do Ippuc, sem sucesso.

Cada zona da cidade (ZR 1, 2, 3...) permite construir um número "x" de andares nos lotes. Imóveis de 1900 e antigamente são geralmente baixos, mas o terreno onde estão poderia abrigar espigões. Um cálculo aponta qual seria o "potencial construtivo" do terreno. Pronto: o que não foi ocupado pode ser vendido para um construtor interessado em erguer um prédio mais alto do que o permitido, noutro canto de CWB.

Numa explicação bem rasteira, o "potencial construtivo" é a venda de um terreno que não existe para alguém que vai burlar a lei, fazendo mais andares do que pode, lucranco com isso, claro. Parece absurdo, mas é legítimo. O gestor público pode usar dessas artimanhas para gerar dinheiro e salvar da demolição casas velhas, já que ajudam a contar a história da cidade.

O modelo deu tão certo que, deu no que deu: acabou sendo apropriado para resolver problemas de atendimento social, esportivo e turístico. Em tese, nenhum mal. Mas vigora a lei do mais fraco. Para comprar "potencial construtivo" de um imóvel declarado UIP, o investidor interessado tem de bater cartão em cartórios, perder tempo com papelada e ainda pagar mais caro pelas cotas. Para comprar de uma Uiep – seja de uma creche ou, quiçá, de um estádio de futebol – basta ir à prefeitura, acertar em prestações, como se tivesse adquirindo uma máquina de lavar roupa nas Casas Bahia. Não é difícil adivinhar qual é a preferência do cliente.

Há ainda outro elemento. A prefeitura diz que a cota de uma Uiep é mais cara, garantindo as UIPs. Teoria. Na prática, com os redutores, os R$ 350 o metro quadrado chegam a sair mais em conta dos que os R$ 200 da UIP. A pá de cal vem com a sugestão do poder público, nas guias internas da prefeitura, para que se obedeça ao Decreto 689, comprando potencial de creche. Só um mecenas do Renascimento não teria dúvidas sobre o que fazer.

A essa altura, o leitor atento deve estar questionando por que cargas d’água a prefeitura de Curitiba – já apontada como modelo nacional em gestão de imóveis culturais e históricos – estaria roendo a corda. É uma boa pergunta. O fato é que o Departamento do Patrimônio do Ippuc passa por um apagamento desde a morte da arquiteta Milna Leone, em 2001. Projetos como o da preservação do casario italiano do Umbará simplesmente desapareceram, para citar um caso. Em paralelo, decretos como o 689 mostram que o poder público está agindo como um investidor e se tornando ele mesmo concorrente do patrimônio que deveria preservar.

Não é assunto fácil. Em conversa com a reportagem, o engenheiro civil Luiz Fernando Ja­­mur, 49 anos, secretário municipal de Governo, esmiuçou toda a legislação 9801, 9802 e 9803, de 2000. Ele defende que as Uieps não vampirizam as UIPs porque cada uma corre "em pista própria". Ou seja, são políticas paralelas e não concorrentes. "Todas as áreas são atendidas. As regras de transferência de potencial impedem a competição predatória. Há um conselho para decidir o que é permitido."

Em paralelo, lembra que o mercado cresceu 43% em dois anos, aquecendo o mercado de compra e venda de "potencial cons­­trutivo". "Nunca foi tão propício..." Com a notícia de que os R$ 90 milhões que serão revertidos para o Atlé­tico sairão do potencial, a orelha de quem cuida de patrimônio caiu. É um setor complicado, como lembra Jamur: imóveis antigos têm muitos herdeiros. A cidade não pode parar por causa deles.

Do outro lado do ringue, os quixotes estrilam. "A lei das UIPs é frágil demais. Só vejo uma saída: a prefeitura teria de ser mais generosa nos benefícios aos proprietários e menos rigorosa quando os donos precisam fazer pequenas alterações", opina o arquiteto Salvador Gnoato, professor da PUCPR e idealizador do projeto que incluiu nas UIPS uma leva de casas modernistas. Jamur é rápido no gatilho. "O patrimônio já está tutelado. Mas há regras. Tem de cumprir para ganhar benefícios. Falta empenho dos proprietários."

A arquiteta Giceli Portela já se acostumou a ouvir esse argumento. Seu escritório – localizado na belíssima Casa Vilano­va Artigas, na Rua da Paz – restaurou sete casas com dinheiro do potencial construtivo. Desde o Decreto 689, pena para vender míseras cotas. Esta semana, com a notícia sobre o Atlético, um construtor desistiu de in­­vestir em UIPs. Quer economizar.

A propósito, Giceli acaba de re­­ceber licença para vender po­­tencial da Catedral Metropolita­na de Curitiba. Serão 4.560m2 – ou aproximados R$ 900 mil (se conseguir vender a pelo menos R$ 200 a cota). Fosse declarada uma Uiep, a igreja-mãe da cidade conseguiria fácil os R$ 8 milhões necessários para sua reforma total. Mas o benefício não foi concedido. A faxina no Atlético vai custar 11 vezes mais. Resta dizer: uma esmolinha pelo amor de Deus.

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