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A jurista Nadine Strossen, ex-presidente da American Civil Liberties Union (ACLU),| Foto: Wikimedia Commons

Em um momento crucial para as discussões sobre liberdade de expressão no Brasil, o país recebe, nesta semana, uma das vozes mais influentes sobre o tema no mundo: Nadine Strossen, ex-presidente da American Civil Liberties Union (ACLU).

A jurista e professora americana, conhecida por sua atuação contundente na defesa de princípios universais de liberdade, participará na quarta-feira (27) e na quinta (28) do evento "Liberdade de Expressão: o Debate Essencial", organizado pela Gazeta do Povo e pelo Ranking dos Políticos com o apoio do Instituto Liberal, do Instituto dos Advogados do Paraná e da Federação Nacional dos Institutos dos Advogados (Fenia).

Em entrevista à Gazeta do Povo, Nadine reflete sobre os dilemas atuais enfrentados em diferentes países com relação ao controle do discurso, à moderação de conteúdos digitais e ao equilíbrio entre a liberdade de expressão e outras garantias e direitos. Para ela, diante do perigo de "leis vagas e amplas contra conceitos tão manipuláveis como 'fake news' ou 'desinformação'", é preferível "errar a favor de superproteger as mentiras, porque a alternativa seria subproteger a verdade".

A especialista defende que o governo só deve intervir na liberdade de expressão em situações de emergência e com restrições claramente justificadas. Com as recentes controvérsias sobre moderação de conteúdo por gigantes da tecnologia, a jurista examina os riscos da influência governamental na questão e diz que é contra leis estatais que controlem as políticas de moderação.

Confira a entrevista completa com Nadine Strossen, concedida por e-mail.

Um recente projeto de lei sobre fake news no Brasil levantou preocupações sobre a possibilidade de o Estado sufocar críticas legítimas ou opiniões dissidentes sobre suas instituições. De que forma nações como o Brasil podem regular a disseminação de informações falsas sem restringir a genuína liberdade de expressão?

Nadine: Eu recomendaria para o Brasil a abordagem adotada nos EUA sob a moderna lei da Primeira Emenda (a partir de meados do século XX), que foi endossada por muitos defensores de direitos humanos e especialistas em países de todo o mundo.

Ressalto este último ponto para enfatizar que apoio a lei moderna da Primeira Emenda não por algum chauvinismo americano, mas porque essa lei corresponde a princípios universais e atemporais de liberdade de expressão, que foram tanto endossados quanto contestados por indivíduos e autoridades governamentais em todos os países ao longo da história – veja o excelente livro recente de Jacob Mchangama, "Free Speech: A Global History From Socrates To Social Media" ("Liberdade de Expressão – Uma História Global de Sócrates às Redes Sociais"). O think tank de Jacob com base na Dinamarca, Justitia, emitiu relatórios demonstrando os impactos adversos de leis que empoderam governos para suprimir discursos falsos ou enganosos além das restrições que a lei da Primeira Emenda permite.

É importante reconhecer que mesmo a lei da Primeira Emenda permite ao governo – corretamente – restringir expressões falsas ou enganosas quando isso satisfaz o que frequentemente se chama de "princípio de emergência": considerada em seu contexto factual completo (e não baseado apenas na mensagem ou "conteúdo" da expressão), aquela expressão tem uma conexão causal tão estreita e direta com um dano iminente específico que nenhuma medida, exceto uma restrição, pode provavelmente evitar o dano. A Suprema Corte dos EUA reconheceu várias categorias de expressão falsa ou enganosa que satisfazem este teste de emergência, incluindo difamação, fraude e perjúrio.

Além disso, o Tribunal determinou que expandir o poder do governo para restringir expressões que têm apenas uma conexão indireta e especulativa com um potencial dano confere ao governo muita discrição, que ele presumivelmente usará para restringir expressões que são críticas de suas políticas – ou seja, dissidentes.

A Justitia emitiu um relatório durante a pandemia da Covid que demonstrou que governos consistentemente invocaram leis contra desinformação relacionada à Covid para suprimir pontos de vista que simplesmente criticavam ou diferiam das políticas governamentais. Mesmo nos EUA, o governo de Porto Rico emitiu leis de desinformação sobre Covid que a ACLU desafiou com sucesso em nome de importantes jornalistas investigativos. Esses jornalistas notaram o efeito inibidor que tais leis teriam mesmo em reportagens bem-intencionadas sobre notícias urgentes e importantes. A decisão do juiz destacou que é precisamente durante tempos de crise que a liberdade de expressão e o papel da imprensa como "cão de guarda" são mais importantes.

O juiz também destacou quais medidas o governo poderia ou deveria tomar, em vez de censura – a consagrada abordagem do "contradiscurso". Como ele disse: "em vez de criminalizar a expressão, os legisladores poderiam simplesmente ter exigido que o governo usasse suas múltiplas plataformas de comunicação para apresentar uma descrição completa e precisa dos fatos" sobre Covid e outras emergências.

Estudos mostram que tais estratégias de "contradiscurso", como fornecer informações precisas e educar sobre o uso crítico dos meios de comunicação, são mais eficazes do que a censura para estimular uma investigação crítica, um ceticismo saudável e uma busca por fatos válidos e análise de especialistas.

Existem princípios universais que todos os países deveriam adotar em relação à liberdade de expressão? Como esses princípios devem ser equilibrados com preocupações sobre discursos potencialmente prejudiciais, como incitação à violência?

Nadine: Os dois princípios mais cardinais da moderna lei da Primeira Emenda também são ecoados nos principais tratados da ONU que regem a liberdade de expressão – em especial o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 19, que foi ratificado por quase todos os países do mundo.

O primeiro princípio, que já descrevi na resposta à pergunta anterior, é o "princípio de emergência", que especifica que o governo só pode restringir o discurso como último recurso, quando necessário para prevenir um grande dano que o discurso cause diretamente e de forma iminente. Isso significa que a medida governamental abordando o dano ameaçado deve ser a "alternativa menos restritiva": ou evitando de todo restringir o discurso, caso outra medida pudesse ser pelo menos tão eficaz quanto na prevenção do dano (por exemplo, educação ou punição de conduta violenta ou ilegal), ou impondo um limite menos rigoroso ao discurso, em vez de um mais rigoroso, se o primeiro fosse suficiente.

Além disso, a lei deve ser "estritamente direcionada" – escrita em termos suficientemente específicos para restringir a discricionariedade do governo e para dar às pessoas um aviso adequado do que proíbe, de modo a evitar o indesejável arrefecimento do discurso protegido que acontece quando uma lei é escrita em termos vagos e demasiado amplos.

O segundo princípio complementar, que a Suprema Corte chamou de "princípio fundamental" da liberdade de expressão, é geralmente descrito como "neutralidade de ponto de vista" ou "neutralidade de conteúdo": que o governo nunca pode restringir o discurso apenas por desaprovação ou ódio de seu ponto de vista, conteúdo, mensagem ou ideia. Este é o oposto do princípio de emergência: sob este último, o governo restringe o discurso não apenas por desacordo ou desaprovação de seu conteúdo, mas sim porque, no contexto geral, o discurso representa diretamente um perigo sério e iminente.

A Suprema Corte americana reconheceu várias categorias de discurso definidas pelo contexto que satisfazem o princípio de emergência, incluindo os seguintes: incitação intencional de conduta violenta ou ilegal iminente que provavelmente ocorrerá de imediato; "ameaças reais", que são dirigidas a um indivíduo específico ou a um pequeno grupo de indivíduos com a intenção de instilar um medo razoável (ou seja, objetivo) de que serão submetidos a conduta violenta ou ilegal; e assédio ou intimidação direcionados.

Tomados em conjunto, esses princípios complementares permitem sensatamente ao governo proibir o discurso que é mais perigoso, ao mesmo tempo em que proíbem o governo de se envolver na censura mais perigosa. A censura baseada em ponto de vista é a mais perigosa porque permite ao governo suprimir ideias inconvenientes, minando não só a liberdade individual, mas também o autogoverno democrático.

O mesmo vale para a censura que ocorre devido a um "medo indiferenciado" (para citar a Suprema Corte) de que o discurso possa potencialmente, de maneira indireta, em algum ponto futuro, levar a dano – em contraste com a conexão forte e direta entre discurso e dano iminente que o teste de emergência exige. Afinal, como observou o ex-juiz da Suprema Corte dos EUA Oliver Wendell Holmes: "Toda ideia é uma incitação". É claro que ele não quis dizer, com isso, que o governo poderia censurar todo tipo de ideia, mas justamente o contrário.

Vários países, incluindo o Brasil, estão enfrentando o dilema da moderação de conteúdo das grandes empresas de tecnologia. Em sua opinião, quais responsabilidades essas empresas têm em defender a liberdade de expressão e como elas devem ser regulamentadas, se é que devem ser?

Nadine: Eu seria contra leis governamentais que controlassem as políticas de moderação de conteúdo das empresas, porque isso violaria os próprios direitos previstos na Primeira Emenda de que empresas façam seus próprios julgamentos editoriais sobre que conteúdo ou oradores hospedar em suas plataformas e quais não. (E as empresas, da mesma forma, não têm obrigação de proteger os direitos de expressão de outros; a Primeira Emenda adequadamente restringe apenas a ação governamental, não a ação do setor privado independente.)

Dito isso, as empresas, na prática, têm um controle e influência tão enormes sobre o direito de comunicar ideias e informações, e sobre o debate essencial à democracia relacionado a questões de políticas públicas, que eu as incentivaria – como muitos especialistas já fizeram – a alinhar suas políticas de moderação de conteúdo com os princípios fundamentais do Direito Internacional sobre direitos humanos que mencionei em resposta à segunda pergunta. Um dos principais defensores desta abordagem foi o professor de Direito David McKay, quando era relator especial da ONU para a Liberdade de Expressão.

Eu também incentivaria as empresas a facilitar a liberdade de escolha e autonomia dos usuários no controle de seu próprio fluxo de informações, permitindo interoperabilidade: permitindo que outros acessem suas plataformas para fins de instalação de software que facilite a filtragem individualizada. Esta abordagem foi eficazmente defendida pela principal organização de liberdade de expressão digital EFF (Electronic Frontier Foundation).

Também incentivaria as empresas a não ceder à coerção governamental ou a conspirar com o governo para suprimir a expressão protegida constitucionalmente. Como vários juízes federais decidiram recentemente, há muitas evidências de que muitos funcionários de órgãos federais cruzaram a linha entre o incentivo permitido e a coerção não permitida. O princípio é claro: o governo não pode suprimir indiretamente o discurso protegido pela Constituição, delegando a supressão a empresas privadas.

Se esse princípio foi violado por mensagens específicas do governo americano às empresas, não está tão claro. Vários juízes recentemente decidiram que a linha foi cruzada pela administração Biden (e a administração Trump certamente também exerceu pressões censórias sobre essas empresas, mas nenhum processo foi movido contra ela), mas a atual administração agora recorreu à Suprema Corte.

Com a proliferação de plataformas digitais, há um debate crescente sobre os direitos de liberdade de expressão online versus offline. Você acha que eles devem ser considerados de maneira diferente? Se sim, como?

Nadine: Várias leis propostas e atuais buscam impor restrições especiais às plataformas digitais, que violariam os princípios da Primeira Emenda sobre liberdade de expressão se impostos a outras mídias. Até agora, não fui convencida de que qualquer uma delas se justifique. Mais ainda, os juízes decidiram (embora não uniformemente) que essas leis violam a Primeira Emenda. Por exemplo, juízes derrubaram a lei da Flórida que restringia as práticas de moderação de conteúdo das redes sociais e a lei de Nova York que impunha certos requisitos especiais de divulgação às empresas de mídia social.

Concordo com as decisões da Suprema Corte de que todas as mídias têm direito a igual proteção da Primeira Emenda, mas que a Primeira Emenda (que sempre é específica em sua aplicação) pode se aplicar de maneira diferente a diferentes mídias, dadas as distinções factuais relevantes entre elas. Até agora, porém, o Tribunal tem consistentemente sustentado que a mídia online (e seus usuários) deve ter o mesmo alto nível de proteção à liberdade de expressão que se aplica à mídia impressa e seus usuários.

Talvez, em algum momento no futuro, possam surgir evidências sobre algum aspecto específico das redes sociais que possa justificar uma regulamentação especial. Por exemplo, algumas pessoas que respeito estão defendendo limites especiais ao acesso de jovens às redes sociais, o que violaria a Primeira Emenda com relação a outras mídias. Eles argumentam que há evidências suficientes de que as redes sociais têm impactos psicológicos adversos nos jovens de uma forma especial.

A atual discussão no Brasil sobre limites da liberdade de expressão trouxe à tona a diferenciação entre fatos, opiniões pessoais e críticas legítimas. O termo "fake news" tem sido frequentemente aplicado não apenas a notícias manifestamente falsas, mas também a opiniões e ideias dissidentes. Como elaborar critérios claros para diferenciar fatos, opiniões e críticas, sem rotular inadequadamente pontos de vista dissidentes como "fake news"?

Nadine: Esta excelente questão lança luz sobre uma das principais razões pelas quais, como expliquei na primeira questão, eu me oponho – e, mais importante, a Suprema Corte dos EUA se opõe! – a restrições sobre discursos falsos ou enganosos além do que estritamente está definido pelo princípio de emergência: a inerente vagueza, subjetividade e possibilidade de manipulação de um conceito que seja amplo demais. O que é "fake news" ou "desinformação" para uma pessoa pode ser uma verdade muito estimada por outra, e o governo não deve ser o árbitro disso. Como disse a Suprema Corte ao derrubar um estatuto que proibia uma gama de mentiras ampla e vagamente descrita: "Não precisamos do Ministério da Verdade de Orwell em nossa democracia" (em referência a 1984).

Como a pergunta também sugere, grande parte da expressão que é alvo de repressão não envolve apenas uma questão de fatos objetivamente verificáveis ou que se possam desmentir, mas sim uma mistura de fatos com análise, interpretação e opinião. E concordo plenamente com a Suprema Corte quando afirma que "ideia falsa é algo que não existe" sob a Primeira Emenda.

À luz dessas considerações, nenhuma definição legal, juiz ou júri podem distinguir precisamente entre verdades e mentiras em muitas situações. Então, temos que errar a favor de superproteger as mentiras, porque a alternativa seria subproteger a verdade, devido ao efeito inibidor de leis vagas e amplas contra conceitos tão manipuláveis como "fake news" ou "desinformação".

E um conceito ainda mais assustador é um termo que tem sido invocado nos EUA, inclusive por alguns funcionários do governo: "malinformação" [tradução livre do termo em inglês "malinformation"] – informação verdadeira que é usada para fins supostamente nefastos! Acho que o perigo desse conceito fala por si; seria um passe livre para os funcionários do governo "protegerem" as pessoas da verdade com que somos considerados incapazes de lidar – mais precisamente, seria um passe livre para os funcionários do governo protegerem seu próprio poder.

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