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Eles tinham uma moto

"Com uma situação da minha nova vida eu já me acostumei – a cara de espanto das pessoas. Elas mal chegam perto de mim. Pensam que eu vou quebrar", diverte-se Rodrigo Board, 22 anos, paraplégico depois de um acidente com motocicleta, em Colombo, região metropolitana de Curitiba, no início da primavera de 2008.

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Moto quem?

Dados sobre motoboys são frágeis

Previdência

Motoboys são em sua maioria informais. Logo, não são registrados, o que torna quase impossível saber quantos estão "encostados" pelo INSS ou aposentados por invalidez. A reportagem apurou que no mês de abril, a Previdência pagava 19.366 benefícios por acidentes de trabalho em Curitiba, região e litoral. Vinte profissionais foram aposentados. É um número irrisório ao se levar em conta que 41% dos atendimentos nos hospitais de trauma da capital são de homens, jovens adultos, que pilotavam motocicletas no horário de expediente e à noite.

Pesquisa

"Não sabemos quem é o motoqueiro", diz a profissional de saúde Vera Lídia Oliveira, da Secretaria Municipal de Saúde. A pesquisadora e sua equipe fazem há dois anos um levantamento sobre o perfil dos acidentados sobre duas rodas. Os resultados preliminares são impressionantes: 49% dos acidentes com vítimas em Curitiba atingem motoqueiros. Resta agora assinar embaixo quantos deles são motoboys.

Escola

De motoboy a motofretista

No último ano, Iraci Bilek Bara, coordenadora de Desenvolvimento Profissional em Curitiba do sistema Sest/Senat – voltado para o setor de transportes –, viu passar pelas rampas da instituição, no bairro do Boqueirão, uma tribo em metamorfose: eles chegam motoboys e saem motofretistas.

Já passava da hora. Em meados do ano passado, com a regularização do ofício de táxi e entrega sobre duas rodas, começou uma campanha para mudar o nome, o status e os hábitos dos outrora motoboys. Não é um passe de mágica: eles formam uma tribo urbana, com vocabulário próprio e modus vivendi particular. Haja vista o estardalhaço que fazem a cada vez que um colega se acidenta, nem sempre para bem.

"São em boa parte desempregados, com algum dinheiro para comprar uma moto, circulando à noite como entregadores de pizzas e sanduíches. Fazem pequenos serviços para melhorar o rendimento. E têm em média 30 anos", resume Iraci sobre os 2,5 mil motoqueiros que se inscreveram no curso gratuito do Sest/Senat, com 20 horas de duração, de maio de 2009 a abril último.

Os alunos estudaram pilotagem defensiva, primeiros socorros, legislação, relacionamento interpessoal, técnicas de atendimento aos clientes e noções de mecânica. Embora fora das apostilas, as histórias de acidentes, a memória dos mortos e a tragédia dos mutilados apareceram nas aulas a cada vez que um dos motofretistas levantava a mão.

Para a equipe da casa, o encontro com os "motoboys" foi uma surpresa. "A gente ainda está aprendendo a lidar com eles", conta. Pelo visto, não vai ser nenhum sacrifício. A juventude e o gosto pela liberdade fazem o grupo parecer uma trupe de colegiais. E uma trupe à espera de mudanças.

Segundo Iraci, com a legislação, o olhar da sociedade sobre esses rapazes deve mudar. E vice-versa. Nenhum deles escreve na moto "papai, me espere", como os caminhoneiros. Mas é bem provável que em pouco tempo, enxergando melhor o lugar que ocupam, passem a se cuidar melhor. A hora é agora. (JCF)

  • Para os motoqueiros Waldemar, Adílson, Joacir, Alexandre e Paul, de Curitiba, acidente é rotina
  • Rodrigo Board, de Cerro Azul, personagem da matéria da Gazeta em 16 de maio: geração de mutilados.
  • Dinalva Monteiro cuida do irmão Dirceu, em Colombo
  • Rodrigo Cardoso, no Hospital do Trabalhador: vou voltar
  • Rached Hajar Traya, no Hospital do Trabalhador: um médico que estuda mobilidade

Se perguntarem a um motoboy qual é o maior inimigo da categoria, é bem provável que responda "os carros". Não é de hoje que neanderthais sob duas e quatro rodas se digladiam nas pistas de asfalto das grandes cidades. Mas haverá quem dê uma resposta mais precisa: "Nosso maior inimigo é a pizza". Bingo.

Nesse momento, alguém pode estar pedindo por telefone uma "pepperoni" ou uma "tomate se­­­co com rúcula" – "para ontem". O resto da missa já se sabe. "O mesmo sujeito que buzina para a gente no trânsito é o que liga para a pizzaria exigindo que seu pedido seja entregue em 20 minutos", protesta Alexandre Massuchetto, 25 anos, motofretista – nome oficial da atividade desde sua regularização em julho de 2009.

Alexandre é um espécime típico da categoria. É jovem, ganha um salário modesto, flerta com a informalidade e tem cicatrizes nas pernas conquistadas num acidente grave, no seu caso, ocorrido próximo ao Terminal da Vila Oficinas. "Fiquei com medo de virar um vegetal", relembra, em meio a um grupo de amigos que se preparavam, mês passado, para iniciar um curso intensivo de direção e primeiros socorros oferecido pelo sistema Sest/Senat, no Boqueirão.

Chega a ser mórbido. Waldemar Júnior, 28, um ano de "bico" noturno como entregador, é o único da turma que ainda não beijou o asfalto. "Não tem motoboy sem lesão", desafia Joacir Rabelo dos Santos, 31, em meio à exibição de dedos tortos e marcas de enxertos nas panturrilhas e coxas. "Hoje mesmo vi um motoqueiro embaixo de um ônibus...", solta outro, dando início à contação de causos.

Se entre os mais de cem mil motoqueiros de Curitiba é raro encontrar um não-acidentado – ainda que de raspão –, mais raro ainda é quem não tenha pelo menos ouvido uma história sobre pernas amputadas e sequelas mentais irreversíveis provocadas pela boleia. Tão surpreendente quanto esse circo de horrores é saber que – apesar do gravíssimo problema de saúde pública provocado pela ascensão dos motoboys e afins – inexistem dados específicos sobre o assunto. Tem acabado em pizza, como se diz.

As informações são genéricas. De acordo com o Instituto Brasi­leiro de Segurança do Trânsito, o país teria algo como 18 milhões de motos, veículo que gera 10 mil mortes por ano e 500 mil feridos. Perto do volume de carros, as motocicletas não fazem um verão – são 10% da frota de veículos. Mas ao se levar em conta os estragos que provocam nos seus condutores, a situação se inverte: correspondem a 30% dos acidentes, a 13% das vítimas fatais.

Pesquisas do Denatran e do Ipea indicam que a chance de um acidente com moto levar a óbito é de 71%, dez vezes mais do que o automóvel. O mesmo se diga para a geração de sequelas. Ainda que sob suspeita de chutômetro, o consenso é que 70% dos sobreviventes venham a carregar por toda a vida os efeitos de sua queda. Apenas em 2008, gastou-se R$ 8 milhões para tratar das vítimas. O que não tem impedido o surgimento de um exército de mutilados.

É só fazer a conta: 15% dos feridos acabam internados. Se desses, a maioria ficar com marcas profundas, só no Paraná, a cada ano, 1,5 mil pessoas – leia-se homens jovens e pouco instruídos, na sua maioria – passam a carregar alguma forma de deficiência.

"Eu sei"

"Sou ex-motoqueiro e sei. As situações de ‘quase’ acidente são diárias. Uma hora acontece. E o parachoque do piloto é a própria testa. Nem precisa dizer mais", ilustra o fisioterapeuta Murilo Cezar Bredt, 36 anos, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) integrado à clínica modelo de reabilitação mantida pela universidade.

O cenário em que Murilo trabalha – entre o Prado Velho e a Linha Verde – ilustra bem o problema. A dizer: nem todo motoqueiro é motoboy. Nem há como saber quantos motoboys existem. Entre os pilotos, diz-se que "fulano bate caixinha", expressão usada para definir uma atividade extra, feita de gorjetas e entregas a jato, quase sempre à noite. São justamente esses franco-atiradores que acabam formando filas nos centros de fisioterapia gratuitos, de onde nunca se livram antes de seis meses.

Ao final desse período, têm noção exata do ponto em que estão: são moços, são pobres, sem carteira registrada e deficientes, dependentes da mãe, a quem cabe trocar fraldas, dar alimentos à boca e fazer das tripas coração para conseguir remédios contra escaras. Um tubo de óleo Dersani pode chegar a R$ 80. E dá para uma vez só.

Exagero? É certo que nem todos os motoboys acidentados acabam na rua da amargura. Mas a probabilidade de que isso aconteça é cada vez maior. Na última década, a frota de motos em Curitiba aumentou 175%. A participação desses veículos em acidentes fica na casa dos 30% do total de ocorrências. O saldo beira meia dúzia de mortes por mês. E uma incógnita para o futuro. Quantos saíram com marcas para sempre? Eis a questão.

No mês em que a reportagem da Gazeta do Povo conversou com profissionais de saúde e vítimas de acidente, a conclusão mais flagrante é que, por força de sua natureza, as motocicletas deixam da­­­nos a curto, médio e longo prazo. Muitos saem andando de seus sinistros. Até se dar conta da perna pendurada. Com o passar dos anos, o impacto da batida pode trazer surpresas, como convulsões, alterações de comportamento, artroses aceleradas e danos à audição e à visão.

Alguns centros de saúde já se debruçam sobre esse fenômeno. E fazem um alerta, pedindo campanhas de conscientização tão ou mais agressivas quanto as feitas para combater o tabagismo. "Diante de um paciente traqueostomizado muita gente mudaria de atitude", aposta a fisioterapeuta Andrea Pires Müller, coordenadora do curso de Fisioterapia da PUCPR.

Andrea divide a reivindicação com Murilo – que já viu, pasmo, um motoboy fazendo entregas com gesso na perna; e com o veterano Luiz Bertassoni Neto, 53, também da PUCPR. A conversa com os três é um início de campanha para evitar o massacre dos motoboys: eles falam de lesão modular, fraturas no fêmur e de danos à tíbia e à patela com a naturalidade de quem vai à feira. É o bastante para concordar com Bertassoni: "A atividade de motoboy virou um mal do século 21."

A galope

A dez quilômetros dali, no Hospital do Trabalhador, o século 21 vai a galope. Nos últimos três meses, a instituição – que é referência em trauma e tem o banco de dados mais completo do estado – passou a discriminar entre os acidentados por moto, quem é motoboy. Até o final do ano, a atitude da administração vai permitir saber o histórico dos internados e, por certo, confirmar que o aluvião de motofretistas está formando uma geração de inválidos, à semelhança do que acontece nos países que entram em guerra.

O homem por trás da inovação é o cirurgião-geral Rached Hajar Traya, 48, coordenador do Pronto-Socorro do Hospital do Traba­lhador. Com mais de uma década de casa, o médico assistiu – pelas portas de entrada na Rápida do Portão e da República Argentina – à chegada, cada vez mais expressiva, desse novo personagem da tragédia urbana.

À semelhança dos fisioterapeutas da Linha Verde, empenhou-se em desamarrar o nó. Hoje, na mesma medida em que fala de questões médicas, discorre sobre mobilidade urbana, consumo, emprego informal e insensibilidade social. "Os motoboys foram satanizados. Mas eles podem cair sozinhos, bater num poste. Estamos diante de um problema de grandes proporções. Essa questão não se resume a um capacete na cabeça. Ela passa pela capacidade que a moto tem de chegar antes." Eis o ponto.

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