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Nylceia de Oliveira com o marido João: após perder o filho em acidente, ela passou a frequentar grupo para superar luto | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
Nylceia de Oliveira com o marido João: após perder o filho em acidente, ela passou a frequentar grupo para superar luto| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo
  • Mais da metade das estradas brasileiras está em mau estado; Veja infográfico
  • Aumento de mortes no trânsito é menor do que o de carros vendidos; Veja infográfico

Todas as segundas-feiras à tarde, cerca de vinte pessoas se reúnem em uma sala do departamento de psicologia da Uni­­versidade Federal do Paraná, no segundo andar do prédio histórico da Praça Santos Andrade, em Curitiba. São em grande parte mulheres de meia idade – mães com histórias comuns de drásticas rupturas. Ao longo de duas horas, elas partilham entre si o sentimento de perda abrupta causado por ações de violência. Seus filhos perderam a vida ainda na juventude, deixando uma sensação de incompletude que, esperam, a terapia em grupo possa ajudar a superar.

Os assassinatos ainda são os casos mais comuns, e formam metade do círculo de cadeiras de plástico. Os acidentes de trânsito completam a roda, e são cada vez mais responsáveis por fazê-la crescer.

Integrante do eixo trânsito, a funcionária pública aposentada Nylceia Cordeiro de Oliveira, de 74 anos, é uma das mais antigas frequentadoras dos Amigos Solidários na Dor do Luto – um grupo voluntário coordenado por Zelinda de Bona, também 74 e também vítima indireta da violência no trânsito. Para Nylceia, a perda do filho é marcada por uma triste coincidência: durante 18 anos ela foi funcionária da Escola de Educação de Trânsito, um projeto público que ministra lições de comportamento no trânsito para crianças do ensino fundamental.

A profundidade do impacto social de seu trabalho foi plenamente percebida em 2000. João Cândido de Oliveira Júnior, o filho que contava 32 anos, havia comprado um automóvel usado e não levou o veículo para revisão. Quando voltava do trabalho, perdeu o controle do carro em uma descida da Rua João Gava, próximo à Ópera de Arame, no bairro Abranches, e bateu em uma árvore.

A família não acredita que o rapaz solteiro e provedor da casa tenha sido irresponsável ao volante. Mais de uma década depois do acidente, porém, permanecem as dúvidas sobre o que realmente aconteceu naquela noite. Devido à destruição do veículo, a perícia não foi conclusiva. Mesmo um profissional particular contratado pela família foi incapaz de descobrir se e qual foi o problema mecânico responsável por tirar a vida do filho. "É um baque tão grande que eu acho que a gente nunca mais vai se recuperar", diz ela, enquanto é consolada por Zelinda com carinhos. "Eu fiquei de um jeito que não posso ouvir sirene de bombeiro. Quando vejo notícias de acidente de trânsito, me interesso em saber mais. Me identifico e sinto pena dessas pessoas."

Mais mortes

As amigas solidárias na dor do luto são uma pequena amostra de um problema social que insinua índices epidêmicos no Brasil. O termo é do próprio ministro da Saúde, Alexandre Padilha, ao anunciar em novembro passado que o país havia ultrapassado os 40 mil mortos em acidentes de trânsito em 2010, segundo dados compilados pelo Sistema Público de Saúde (SUS).

Esse número revela um crescimento constante no número de vítimas a cada ano. Desde 2003, de acordo com os mesmos dados do SUS, houve um aumento de 10 mil vítimas na contagem anual. Entretanto, esse levantamento abrange apenas os óbitos registrados no local do acidente. Os acidentados que morrem no hospital por consequência de ferimentos, cirurgia ou infecção acabam recebendo outra classificação. Especialistas do setor estimam que o total ampliado de mortes ultrapasse os 70 mil por ano. É como se uma cidade média fosse dizimada a cada ano e meio.

Frota cresceu, mas falta de educação se manteve

A primeira década do século 21 se tornou a era do veículo automotor no Brasil. A frota nacional mais que dobrou, passando de 32 milhões em 2001 para quase 70 milhões no final do ano passado. O dado explica em grande parte o crescimento no número absoluto de mortes no trânsito. "O trânsito é um conjunto de engenharia, tecnologia e inteligência, e não foi feito para machucar as pessoas. Mas já passou do ponto. Chegamos a um limite intolerável", diz Celso Alves Mariano, consultor do Portal do Trânsito, um site mantido pela empresa de material educacional gerida por ele.

O trânsito também possui os seus grupos de risco. Os jovens formam o mais perceptível deles. De acordo com os dados do SUS, um em cada quatro brasileiros mortos em acidentes de trânsito em 2010 tinha entre 20 e 29 anos de idade.

Outro grupo surgiu com o aumento da frota: também durante a década passada, o número de motocicletas e motonetas nas ruas disparou, passando de 4,5 milhões em 2001 para 18 milhões em outubro de 2011. Esse tipo de veículo é responsável por 6 em cada 10 indenizações pagas pelo DPVAT (Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres), embora represente apenas um quarto da frota.

Educação

Os especialistas ouvidos pela reportagem são categóricos em defender a prioridade para os programas de educação no trânsito, ao mesmo tempo em que se mostram desenganados com a capacidade do poder público em doutrinar o trânsito a partir de fiscalização. Investimentos em estrutura e profissionais não soam críveis no curto ou médio prazo.

"No mundo inteiro, o fenômeno do automóvel ainda está sendo digerido. Do ponto de vista antropológico, o carro chegou "ontem" na nossa vida – há pouco mais de um século. Ele se tornou uma extensão do nosso corpo e amplifica os defeitos da nossa formação. No Brasil, nos falta consciência cidadã para lidar com isso", analisa Celso Alves Mariano, consultor do Portal do Trânsito.

Legislação

A implantação do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em 1998, é vista como a pedra fundamental para a melhoria do trânsito no Brasil. A carta de 20 capítulos e 324 artigos definiu normas para a engenharia de tráfego, dividiu responsabilidade entre as esferas de poder, tipificou infrações e estabeleceu punições. "O trânsito melhorou muito por existir esse código, que é infinitamente superior à lei anterior", compara Mariano.

Alguns comportamentos se solidificaram a partir da lei, co­­mo o uso do cinto de segurança para carros e do capacete para as motos. "Isso ajudou a poupar muitas vidas. Não diminuiu a quantidade dos acidentes, mas reduziu a gravidade das lesões", explica Archimedes Raia Junior, doutor em Engenharia de Transportes da Universidade de São Carlos (UFSCAR).

O consumo do álcool segue sendo um ponto de resistência. A criação da Lei Seca, em 2008, se mostrou impactante em um primeiro momento, mas abrandada pela falta de fiscalização contínua.

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