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Os processos julgados pelos tribunais superiores podem parecer algo distante para a maior parte dos brasileiros. Mas as palavras de cada um dos ministros reverberam no cotidiano de toda a sociedade. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) são as instâncias máximas do sistema judiciário no país e fundamentais para a manutenção da democracia. Nos últimos anos, os magistrados têm assumido um papel ativo no reconhecimento de direitos, estando, muitas vezes, à frente do poder Legislativo, responsável por elaborar as leis. É o caso, por exemplo, de assuntos como a adoção por homossexuais e a demarcação de terras indígenas.

Por outro lado, os tribunais criaram polêmicas ao decidir sobre temas delicados. Um dos maiores exemplos é a liberação de células-tronco embrionárias para pesquisas, que dividiu a população em torno de um debate ético. A não condenação de clientes que exploraram sexualmente duas crianças também é criticada por defensores de direitos humanos. Essas decisões afetam não só o cotidiano de juízes das primeiras instâncias, mas toda a sociedade.

O STF e o STJ têm a missão de revisar o que os demais tribunais do país fazem, uniformizando as decisões. O Supremo é o órgão responsável por zelar pela Constituição Federal, a legislação máxima do Brasil. Nenhuma lei pode ser contrária a ela. Os juízes dessas instâncias máximas, chamados de ministros, são escolhidos por reconhecido saber jurídico e ajudam a garantir o funcionamento da Justiça, segundo a Constituição.

Para entender o alcance de uma decisão do Supremo, é preciso compreender como funciona a Justiça brasileira. No país é adotado o chamado sistema romano-germânico, em que há códigos, como o penal e o civil, que orientam o trabalho dos magistrados. Neste caso, a lei escrita tem um papel primordial. No outro sistema, chamado commom law, aplicado nos Estados Unidos, o primordial são as decisões anteriores dos juízes, ou seja, a jurisprudência existente.

O professor da Escola da Magistratura do Paraná e doutor em Direito Fernando Knoerr explica que, em função de o Brasil seguir o sistema romano-germânico, a alteração na lei é mais lenta. Isso porque é preciso todo um trâmite no Legislativo. "Quando decisões im­­portantes ocorrem nos tribunais, acabam refletindo o que já se vê na realidade e homologando uma situação que já existe. Com o reconhecimento judicial, as questões ganham legitimidade muito maior."

Knoerr ressalta que decisões recentes, como a adoção por casais homossexuais, mostram uma abertura da jurisprudência que nunca foi registrada na história brasileira. "É uma sinal saudável de que o judiciário se mostra sensível a mudanças da realidade e deixa de ser um simples repreensor. Os ministros têm assumido papel ativo no reconhecimento de direitos. Andar quase no mesmo passo que as transformações da sociedade é saudável para todos."

Súmula Vinculante

O STF tem o poder de criar súmulas vinculantes, que divulgam o entendimento dos ministros sobre determinado assunto. Isso ocorre quando há um consenso sobre a jurisprudência. Assim, os juízes de primeira e segunda instância têm de seguir a determinação do Supremo. A súmula acaba tendo um poder semelhante ao de uma lei. Isso ocorre desde 2004, quando houve uma alteração na Constituição, e já foram editados mais de 700 documentos.

Sem algemas

Em agosto de 2008, o Supremo editou uma súmula vinculante que restringe o uso de algemas no país. A partir desta data, o uso desse objeto só é permitido em casos de risco de fuga ou agressão. A deliberação ocorreu após um pedido de anulação de julgamento em que o réu ficou algemado durante o júri. A defesa alegou que a imagem do algemado foi decisiva na condenação. Quem passar por constrangimentos pode ser indenizado.

O professor da Universidade Federal do Paraná e criminalista Juarez Cirino argumenta que a intenção dos ministros foi positiva, porém ele não acredita que a deliberação terá efeitos na prática. "As situações envolvendo nossa polícia são muito maiores do que uma lei. É uma questão de direitos humanos, garantias constitucionais, presunção de inocência, dignidade do ser humano e fundamentos do Estado democrático de direito. Não se resolverá este problema sem intensa formação cultural da nossa polícia." Para o professor, editar uma lei não resolve um problema social.

Apesar disso, Cirino concorda que as algemas devem ser usadas somente em casos extremos. "O normal seria que as pessoas respondessem os processos em liberdade, o uso de algemas, então, deveria ser excepcional."

Direito a terra

A demarcação de terras indígenas se tornou um campo fértil para o conflito no Brasil. Na mais recente discussão estava uma área em Roraima chamada Raposa Serra do Sol. Em março do ano passado o Supremo decidiu que os índios tinham o direito de permanecer no local, que terá uma demarcação contínua. A deliberação é uma vitória para os povos indígenas, que já tinham o direito a terra garantido pela Constituição. Nos próximos anos, o entendimento dos ministros pode beneficiar milhares de etnias ameaçadas.

Para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o reconhecimento da ocupação tradicional é uma vitória, mas há outros aspectos preocupantes. O STF criou condicionantes para a demarcação. Uma delas diz que locais já demarcados não podem ser revistos. O vice-presidente do Cimi, Roberto Liebgott, explica que há regiões em que o poder público fez marcações equivocadas ou menores do que deveria. "Os índios não podem ser responsabilizados por um erro do próprio Estado."

Além disso, outra repercussão negativa, de acordo com o Cimi, é que só poderão ser demarcadas áreas que estavam ocupadas pelos índios até a promulgação da Constituição, em 88. Ou seja, se os índios foram expulsos de determinado local por posseiros e não estavam na área naquele ano, não poderão reivindicar a posse. "O fato de os índios não estarem na posse naquele momento não significa que a terra não seja deles. Certamente havia pressão e conflito. Comunidades inteiras chegaram a ser removidas", diz Liebgott. Por isso, a avaliação é de que os conflitos continuarão ocorrendo nos próximos anos.

Crianças desprotegidas

Há menos de um ano o Superior Tribunal de Justiça tomou uma decisão que chocou os defensores dos direitos da criança. Os ministros inocentaram dois adultos – um deles o ex-atleta Zequinha Barbosa – do crime de exploração sexual. O Ministério Público do Mato Grosso do Sul entrou com uma ação para condenar os dois após eles serem flagrados com duas meninas em um motel. As garotas foram agredidas e fotografadas nuas por Zequinha em troca de R$ 80.

Para a socióloga Graça Gadelha, uma das maiores especialistas brasileiras no combate à exploração sexual, o entendimento dos magistrados tem efeito negativo não só nos tribunais de primeira e segunda instâncias, mas nas pessoas que trabalham diretamente com o combate a esta prática. "É desmotivador para quem está lá na ponta e luta há anos por essas meninas."

Graça crê que o impacto de uma decisão como esta em municípios onde a rede de proteção não está organizada pode ser devastador e até incentivar essas práticas, já que para os agressores a chance de punição será mínima. "É preciso trazer os operadores do Direito para discutir direitos humanos. Precisamos garantir que crianças e adolescentes tenham assegurada uma sexualidade digna e segura. Neste caso, a interpretação não estava adequada com o texto da lei."

Direitos do homossexuais

No campo dos direitos da população de lésbicas, gays, travestis e transexuais os tribunais superiores têm atuado com mais intensidade que o Legislativo. Enquanto projetos de lei que criminalizam a homofobia estão parados no Congresso Nacional, o STF votou, no final de abril, pela manutenção da adoção de uma criança por um casal de lésbicas. A decisão criou uma importante jurisprudência na adoção por casais homoafetivos.

Outra deliberação dos ministros do Superior Tribunal de Justiça permitiu que transexuais possam alterar o nome e o sexo no registro civil. Desde outubro de 2009, os transexuais que fazem a cirurgia de mudança de sexo têm este direito garantido. Para os ministros, não havia lógica uma pessoa fazer a cirurgia pelo Sistema Único de Saúde e depois não poder fazer a alteração.

Para o presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (ABGLT), Toni Reis, essas deliberações suprem a falta de leis e garantem a igualdade. "Não queremos nem mais, nem menos, apenas que os direitos humanos sejam respeitados. Há um reflexo nos tribunais de primeira instância positivo e em todos os setores da sociedade." Para Reis, o próximo passo é o reflexo no Legislativo.

Anistia irrestrita

A mais recente decisão polêmica do Supremo foi sobre a Lei da Anistia. Em abril deste ano, os ministros julgaram uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que questionava a validade da anistia para agentes da ditadura.

O entendimento dos magistrados foi de que a legislação vale para todos, tanto para militantes como para torturadores.

A deliberação fez com que o tribunal fosse alvo de críticas de diversas entidades que defendem os direitos humanos, entre elas a Anistia Internacional.

Ainda é cedo para dizer o alcance que essa resolução terá no país. Provavelmente haverá impacto direto em ações que visam condenar ex-torturadores, como no caso do coronel do exército e comandante do DOI-Codi paulista, Carlos Alberto Brilhante Ustra. Há duas semanas, uma ação contra ele foi extinta pela Vara Federal Cível de São Paulo. Entre os motivos estava a validade irrestrita da Lei de Anistia.

Para o professor Romeu Bacellar Filho, conselheiro federal da OAB e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), é difícil para a entidade aceitar a decisão. Apesar disso, ele não acredita que o choque para a sociedade será muito grande. "O impacto maior será para as vítimas. Só quem já foi torturado sabe o que passou. Mas, de certa forma, o brasileiro, em geral, tem uma memória curta."

Células-tronco

Há três anos o Supremo decidiu pela confirmação do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas. O tribunal havia sido consultado após uma ação direta de inconstitucionalidade contra o artigo 5.º da Lei de Biossegurança. Durante o julgamento, o principal questionamento foi ético, com debates sobre em que momento começa a vida. Até hoje pessoas contrárias à lei estudam medidas para impedir as pesquisas.

O coordenador do Núcleo de Tecnologia Celular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Paulo Brofmann, afirma que a decisão teve bastante impacto no meio científico. Até a decisão do Supremo, muitas pesquisas haviam sido canceladas e agora foram retomadas. Para alguns pesquisadores, as células-tronco embrionárias teriam um potencial maior de se transformar em outras células. "No momento em que se confirmou a constitucionalidade da lei, o próprio governo estimulou pesquisas. Mas o problema ético ainda não foi resolvido."

O pesquisador não crê que antes de dez anos haverá uso desta tecnologia.

Para a professora do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília Lenise Garcia, a decisão foi confundida pelo fato de se apresentarem as células-tronco embrionárias como se fossem uma grande promessa para o tratamento de doentes. "Por outro lado, não se deu espaço para que chegasse à população a consciência de que são embriões sendo sacrificados."

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