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Daniel Ortega e Lula em 2010, durante visita do ditador nicaraguense a Brasília.
Daniel Ortega e Lula em 2010, durante visita do ditador nicaraguense a Brasília.| Foto: EFE/Fernando Bizerra Jr

O ministro Paulo de Tarso Sanseverino, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), determinou que o Twitter e o Facebook removam 31 postagens que apontam o apoio do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à ditadura de Daniel Ortega na Nicarágua. A censura judicial, de caráter liminar (provisório), atinge também um tweet da Gazeta do Povo, de 22 de setembro, com a notícia de que o regime de Ortega havia cortado o sinal do canal de notícias CNN naquele país.

Sanseverino atendeu a um pedido de censura da coligação de Lula, que alegou que, em conjunto, as postagens promoviam “reiterada campanha difamatória” contra o petista, “com o objetivo de incutir no eleitor a ideia de que ele persegue e ameaça cristãos, assim como seu aliado e amigo, o ditador da Nicarágua Daniel Ortega”. Na decisão, o ministro diz que as postagens, apresentadas ao TSE pela coligação de Lula, têm “conteúdos manifestamente inverídicos em que se propaga a desinformação de que o candidato Luiz Inácio Lula da Silva defendeu a invasão de igrejas, perseguiria os cristãos, bem como apoiaria a ditadura da Nicarágua”.

Em nota, a diretora da Gazeta do Povo, Ana Amélia Cunha Pereira Filizola, afirmou que a decisão é “censura pura e simples”. “A decisão do TSE contra as postagens nos perfis das redes sociais da Gazeta do Povo é, sem sombra de dúvidas, censura pura e simples. Derrubar conteúdos verdadeiros, e perfeitamente verificáveis, é prática de ditaduras. A decisão, no entanto, reacende a nossa vontade de continuar lutando para que a liberdade de expressão seja totalmente reestabelecida no Brasil, pois, infelizmente, não somos um caso único e inédito. Hoje vemos crescer cada vez mais a interferência de Judiciário contra a liberdade de imprensa. Vamos lutar contra a decisão arbitrária nas esferas cabíveis.”

Entidades como a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) e o Instituto Democracia e Liberdade (IDL) também criticaram a decisão (leia abaixo).

Para basear sua decisão, Sanseverino citou dispositivos do Código Eleitoral e de resoluções do TSE que dizem que não será tolerada propaganda eleitoral que “caluniar, difamar ou injuriar qualquer pessoa, bem como atingir órgãos ou entidades que exerçam autoridade pública”. A remoção dos posts também tem como base regra aprovada no fim do ano passado pelo próprio TSE, que veda “a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral”. A matéria da Gazeta do Povo noticiava o fechamento da CNN na Nicarágua, fato amplamente conhecido.

“Na hipótese dos autos, em análise superficial, típica dos provimentos cautelares, observo que as publicações impugnadas transmitem, de fato, informação evidentemente inverídica e prejudicial à honra e à imagem de candidato ao cargo de presidente da República nas eleições 2022. As publicações transmitem de forma intencional e maliciosa mensagem de que o candidato Luiz Inácio Lula da Silva é aliado político do ditador da Nicarágua Daniel Ortega, e assim como ele será contra os evangélicos e irá perseguir os cristãos”, escreveu Sanseverino. A reportagem da Gazeta do Povo em questão não citava a perseguição a cristãos. Mas também é fato que a ditadura nicaraguense está cada vez mais violenta contra a liberdade religiosa.

O magistrado deu como exemplos postagens, indicadas pela defesa de Lula, publicadas por políticos e influenciadores digitais, contendo críticas a atos do regime de Ortega contra veículos de mídia e religiosos, alertando para o risco de Lula adotar medidas semelhantes no Brasil.

Entre os alvos da ação estão o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o assessor internacional da Presidência da República Filipe Martins, o deputado federal Paulo Martins (PL-PR), o ex-secretário nacional de Cultura e deputado eleito Mario Frias (PL-SP), o deputado estadual Tenente Nascimento (Republicanos-SP), além de jornalistas e comentaristas políticos, como Rafael Fontana, Leandro Ruschel e Kim Paim.

No pedido de censura, a coligação de Lula alegou que é falsa a narrativa de que Lula apoia o regime de Ortega. Os advogados do ex-presidente dizem que ele “jamais demonstrou qualquer tipo de apoio ao regime da ditadura”. “Os representados propagaram conteúdo gravemente descontextualizado, buscando propagar fato sabidamente inverídico de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva apoiaria medidas autoritárias realizadas pelo Presidente da Nicarágua Daniel Ortega”, diz a ação. Os advogados dizem ainda que Lula “sempre pautou sua atuação de modo a respeitar a liberdade de crenças e religiões”. Por fim, citaram agências de checagem que teriam desmentido boatos de que Lula censuraria padres, pastores e ameaçaria igrejas no Brasil.

Na parte em que pediu a remoção da postagem da Gazeta do Povo, a coligação de Lula alegou que o jornal tentaria “induzir ao pensamento de que o ex-presidente compactua com a ditadura”. “As publicações acima referidas buscam associar que o candidato Lula apoiaria veementemente um regime autoritário e que persegue cristãos, o que sabiamente é uma inverdade”, disseram os advogados de Lula na ação – a postagem e a notícia publicada pelo jornal não afirmam que o ex-presidente perseguiria cristãos.

A defesa de Lula também pediu que o TSE determinasse que todos os alvos da ação se abstenham de veicular conteúdos semelhantes. O ministro não atendeu a esse último pedido. Ele determinou que Twitter e Facebook removessem as postagens, sob pena de multa R$ 10 mil por dia. Todas as partes foram intimadas a se defender. O Ministério Público Eleitoral, que também opina nos processos de propaganda, ainda não apresentou parecer.

Censura

Em nota, o presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Marcelo Rech, criticou a decisão. “A ANJ protesta veementemente contra a censura imposta pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino, do TSE, a uma publicação do jornal Gazeta do Povo no Twitter. A decisão contraria frontalmente a Constituição, que não admite censura à imprensa. A legislação brasileira dispõe de uma série de mecanismos para dirimir eventuais abusos à liberdade de expressão, mas neles não se inclui a censura”.

O Instituto Democracia e Liberdade (IDL) também manifestou repúdio à decisão. “Lamentamos que mais uma vez o Judiciário brasileiro atente contra a liberdade. Agora, cerceando um dos veículos mais importantes do Brasil, a Gazeta do Povo, jornal centenário, que é um dos pilares do jornalismo responsável e imparcial. Em meu nome, e da instituição que presido, o IDL, meu mais veemente repúdio”, disse, em nota, o presidente da entidade, Edson José Ramon.

O advogado constitucionalista André Marsiglia Santos, especializado na defesa da liberdade de imprensa, considera que, com decisões do tipo, de retirar do ar reportagens ou postagens de veículos de comunicação, o TSE tem interferido no processo eleitoral.

“Esse caso pode ser avaliado em conjunto com um posicionamento do TSE que tem se tornado recorrente. Que é o de entender eventuais imprecisões técnico-jurídicas de uma matéria, ou um apelo na notícia, algo normal e que faz parte do fazer jornalístico, como algo sabidamente inverídico. Isso tem servido para retirar matérias do ar e promover censura, sob a justificativa de não haver interferência nas eleições. Mas o que eles estão fazendo são interferências”, disse. “O que é para ser banido é aquilo que não se pode contestar de forma alguma, uma matéria inteira, não um trechinho ou uma imprecisão. Se há um trecho impreciso, e a matéria sai do ar, 90% que é verídico é censurado”, afirma.

Outro problema, diz ele, é que muitas decisões têm como base conteúdos publicados por agências de checagem. “(As agências) não têm função pública e não são um instituto totalmente impassível de erro. Basear em cima disso é perigoso.” Por fim, ele observa que algumas campanhas têm pedido ao TSE o banimento de conteúdos jornalísticos junto com postagens de apoiadores de candidatos. “É uma estratégia de descredibilizar imprensa que tem de ser rechaçada”, afirmou.

Liminar tem como precedente decisão de Cármen Lúcia contra Eduardo Bolsonaro

A liminar de Sanseverino apresenta como precedente outra decisão, proferida em setembro pela ministra Cármen Lúcia, na qual ela determinava a remoção de uma postagem de Eduardo Bolsonaro em que ele escreveu que “Lula e PT apoiam invasões de igreja e perseguição de cristãos”. A coligação de Lula apontou “propagação de fake news” e a ministra concordou. Afirmou que as postagens de Eduardo configuravam propaganda eleitoral negativa e ofensa à honra do candidato representante [Lula] e do partido ao qual é filiado [PT].”

“Não são críticas políticas ou legítima manifestação de pensamento. O que se tem é mensagem ofensiva à honra e imagem de pré-candidato à presidência da República, com divulgação desinformação sabidamente inverídica”, escreveu ministra. No dia 13 de setembro, a decisão foi referendada por unanimidade pelos outros seis ministros que julgaram o caso: Alexandre de Moraes (presidente do TSE), Ricardo Lewandowski, Benedito Gonçalves (corregedor da Justiça Eleitoral), Raul Araújo, Sérgio Banhos e Carlos Horbach.

O apoio de Lula e do PT a Ortega

É antiga e conhecida a proximidade de Lula com Ortega, que governa a Nicarágua desde 2007. Em 2010, quando era presidente, o petista disse, em tom de brincadeira, que os dois integravam o “eixo do mal”. “Onde vai ser publicada essa foto, [Ricardo] Stuckert?”, perguntou Lula ao fotógrafo oficial da Presidência, enquanto apertava a mão de Ortega, durante uma cerimônia no Itamaraty. “Vai ter uma pequena manchetezinha: ‘el goviernantes del eixo del mal se encuentran’”, ironizou Lula.

Em 2018, quando Ortega promoveu uma repressão a opositores que resultou na morte de mais de 360 pessoas, o PT deu respaldo ao regime, durante um encontro do Foro de São Paulo em Havana. “Depois de tantos sucessos, sofremos uma contraofensiva neoliberal, imperialista, multifacetada, com guerra econômica, mediática, golpes judiciais e parlamentares, como ocorre na Nicarágua e ocorreu na Venezuela”, disse, durante o encontro, Mônica Valente, dirigente do PT e então secretária-executiva da organização de esquerda.

Participaram do encontro, em julho daquele ano, a ex-presidente Dilma Rousseff e o então presidente da Bolívia, Evo Morales, e o da Venezuela, Nicolás Maduro.

Em 2020, quando o Foro de São Paulo completou 30 anos, num debate online com a presença de Maduro e do líder cubano Miguel Díaz-Canel, Ortega, ao lado da mulher, Rosario Murillo, mandou “nosso abraço e nosso carinho para Lula, que está no nosso coração”. Lula é presidente de honra do PT e fundou o Foro de São Paulo em 1990, junto com Fidel Castro.

No fim do ano passado, o apoio do PT ao regime de Ortega novamente chamou a atenção da comunidade internacional. No dia 8 de novembro, o partido divulgou uma nota celebrando a eleição que deu a Ortega seu quarto mandato consecutivo. Na disputa, os outros cinco candidatos estavam presos ou exilados e três partidos de oposição foram cassados. A Organização dos Estados Americanos (OEA) classificou a eleição como “ilegítima”.

Em seu site, no entanto, o PT classificou a eleição na Nicarágua como “uma grande manifestação popular e democrática” e que o resultado demonstrava “o apoio da população a um projeto político que tem como principal objetivo a construção de um país socialmente justo e igualitário”.

Dois dias depois, a nota foi retirada do site do partido. À época, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, afirmou que a nota “não foi submetida à direção partidária”. “Posição do PT em relação a qualquer país é defesa da autodeterminação dos povos, contra interferência externa e respeito à democracia, por parte de governo e oposição. Nossa prioridade é debater o Brasil com o povo brasileiro”, escreveu ela nas redes sociais.

Ainda em novembro de 2021, numa entrevista ao jornal espanhol El País, Lula minimizou a ditadura na Nicarágua e comparou Ortega à então chanceler da Alemanha, Angela Merkel. “Temos que defender a autodeterminação dos povos. Sabe, eu não posso ficar torcendo. Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não? Por que Felipe González aqui [na Espanha] pode ficar 14 anos no poder? Qual é a lógica?”, disse o petista.

Quando a entrevistadora disse que Merkel e Gonzalez não mandavam prender opositores, como Ortega, Lula tentou se corrigir. “Eu não posso julgar o que aconteceu na Nicarágua. No Brasil, eu fui preso [...] Eu não sei o que as pessoas fizeram para ser presas [...] Se o Daniel Ortega prendeu oposição para não disputar eleição, como fizeram contra mim, ele está totalmente errado”, afirmou o ex-presidente.

Nesta terça (4), Ortega enviou uma carta a Lula parabenizando-o pela votação no primeiro turno das eleições. “Este primeiro momento de triunfo para as famílias e o povo do Brasil, que se levantam com esperança e as vozes de gigantes, anima e alenta a tod@s nós. Parabenizando você e o Brasil, nos congratulamos sabendo que o mundo pertence a quem luta e que estamos realizando as transformações necessárias, com coragem diária”, diz o texto.

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