No início da tarde da segunda-feira de carnaval, um rapaz louro com a juba presa em coque aguarda em frente a um pequeno hotel na cidade catarinense de São Bento do Sul. Ele havia intermediado uma entrevista coletiva com Ian Anderson, o fundador da banda de rock progressivo Jethro Tull. O flautista e vocalista arrastou uma legião de fãs para ver seu show no norte catarinense e se apresentaria naquela noite. O rapaz aproveitava seu intervalo para conversar com conhecidos e tomar um ar.

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Uma mulher para ao seu lado e dispara, empolgada, sem escolher um interlocutor: “Pre-ci-so de uma foto com ele. Será que dá? Minha filha é fã”. Ninguém entendeu. Perguntei, apontando para o Goura: “Com ele ou com o Ian?”. A surpresa: “Com o Goura! Minha filha adora ele. Votou nele, anda de bicicleta pra todo canto, é vegana… Nossa, ela vai ficar muito feliz”. A foto foi clicada em um smartphone. Nela, Goura aparece com um semblante sério, sem o quase-sorriso que sempre o acompanha, vestindo uma camiseta azul da Cicloiguaçu.

“Ainda tô digerindo isso”, confessa, quando perguntam sobre sua vida pós-candidatura a deputado federal. Goura concorreu ao cargo durante as eleições do ano passado pelo Partido Verde. Conquistou simpatizantes pelas ruas e pelas redes sociais, mas não chegou a Brasília. Foi o candidato das pautas ditas alternativas: era “o cara das bicicletas”, do parto humanizado, da reocupação do espaço público pelas pessoas; representava, enfim, um discurso que destoa do politiquês corriqueiro. Alguns dos adesivos amarelos e pretos que replicam placas de trânsito resistem à ação do tempo pelo centro de Curitiba, nas magrelas de eleitores e também em sua caixa de correio.

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Cada abordagem de um desconhecido é uma enzima catalizadora em seu processo de digestão. Nada pelo qual ele não passe em logradouros do qual é habitué: na primeira quadra da Rua São Francisco, próximo à Praça de Bolso do Ciclista, cumprimentam-no a cada dois paralelepípedos. Se hoje tem tantos admiradores por aí, é porque a campanha o expôs a pessoas que não conheciam seu trabalho como cicloativista. “Acho que tudo [que fazemos] é ação política, mas você nunca dá tanto a cara a tapa quanto em campanha. Isso cria uma imagem pública que eu não tinha, é até um pouco estranho. Pessoas que eu não conheço vêm me cumprimentar. Falam: ‘eu votei em você’. Tento lidar de uma forma legal com isso, mas vai demorar pra cair a ficha”. A superfície de contato só cresce.

|| Jorge Brand está batendo expediente. Entra às 8h e sai às 18h; tem um computador, uma mesa e um ramal. Vai ao trabalho pedalando uma bicicleta celeste, de capacete da mesma cor. Nas saídas a campo, veste um colete cinza com faixas reflexivas da Secretaria Municipal de Trânsito por cima da camisa; uniforme e um pouco de burocracia agora fazem parte de sua rotina. “Você concorreu a deputado federal, fez 13 mil votos, tem um trabalho super importante... e teve a humildade de aceitar o colete e virar guardinha de trânsito”, arriscou um amigo. Jorge, o Goura, riu: “Teve um vereador que falou assim: ‘Pô, que legal que você aceitou. Não sei se isso é bom eleitoralmente para você’. Ele quis dizer que de certa forma estou me restringindo, como se estivesse me comprometendo por trabalhar na gestão do PDT”, explanou. Para ele, a palavra deveria ser outra: agindo.

Independentemente de onde estiver, que cargo ocupar ou que atividade desempenhar, Goura não espera resultados positivos ou negativos pelo que faz. É uma das influências mais flagrantes do ioga em sua vida – e também da época em que era devoto Hare Krishna como manda o figurino: de vestes açafronadas e o indefectível tufo de cabelo na cabeça raspada. Hoje, de barba e cabelos longos, a filosofia e devoção ao Deus azul permanece em sua forma de ver o mundo. Em 2013, Goura lançou um pequeno livro de ensaios em que relaciona o ioga e a filosofia vaishnava a assuntos que lhe são caros, como bicicleta, urbanismo em escala humana e vegetarianismo.

Ao futuro, à divindade ou ao acaso (a escolha é do leitor) caberia o resultado do que fazemos. “Eu encarei a campanha como uma intervenção, algo que não se tinha controle absoluto do que resultaria. Conseguimos intervir no meio político de uma forma criativa, relevante e sem ficar nos jargões”, avalia. Com um orçamento que mal chegava aos R$ 20 mil, a estratégia de divulgação de sua candidatura guarda semelhanças com o método punk de realizar as coisas: do it yourself, no muque. Uma das formas que encontraram para divulgá-la assomava pela Rua São Francisco até poucas semanas atrás: um retângulo de compensado amarelo com Goura pensativo pintado em estêncil.

Foi pela “SanFra”, aliás, que ele passou a maior parte de 2014: plantando, cavando buracos, bebericando chopes ou de olho nas filhas enquanto elas brincavam em montes de areia da pré-Praça de Bolso do Ciclista. Goura esteve tão presente naquela quadra que, quando chegou a época das eleições, houve quem julgasse que ele estava tentando se promover em cima de um trabalho coletivo. Sua presença criou nódulos de mal estar em alguns pontos da rede de colaboradores. Ele dispensa pouca energia aos críticos e foca no que é preciso fazer. “Às vezes as pessoas falam merda… dane-se. Se estão falando, a coisa está reverberando e esse é o espírito”.

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Em março foi a Medellín, na Colômbia, como convidado para a quarta edição do Fórum Mundial da Bicicleta. Contou sobre o case da pracinha da Rua São Francisco, construída por incontáveis mãos durante os fins de semana entre fevereiro e setembro. Quando confirmou a participação, era coordenador geral da associação de ciclistas Cicloiguaçu. Quando embarcou no vôo, funcionário da prefeitura de Curitiba. Dois meses antes da viagem, Goura recebeu uma ligação da titular da Secretaria Municipal de Trânsito, Luiza Simonelli, convidando-o a assumir a assessoria da Coordenação de Mobilidade Urbana. Não respondeu na hora. Meditou sobre a questão por dias a fio e ao final, pesando as prováveis lambadas que levaria da opinião pública, aceitou. “O que mais pesou foi a vontade de agir. Não estou lá dentro para fazer joguinhos.”

Jorge se torna Goura

Em seu cartão de visita lê-se “Goura (Jorge Brand) – Coordenação de Mobilidade Urbana”. O nome em sânscrito ele ganhou aos 18 anos, quando foi à Índia pela primeira vez. Acompanhou 30 monges Hare Krishna em uma excursão que durou um mês. Participou da cerimônia três dias antes de voltar para casa. Teve que pagar uma ligação internacional – muito mais cara, naquela época – e pedir que a mãe intermediasse o pedido para o presidente do templo da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna (ISKCON). Autorização dada, recebeu o novo nome, que suplantou o de batismo – Goura é um dos nomes de Krishna, Nataraj, “rei dos dançarinos”. Ligaram-no para sempre a um nome divino e festivo. Foi resoluto na mudança. Entre os 16 e os 20 anos dedicou corpo, alma e mente ao estudo da filosofia, à meditação, à venda de livros na rua e cortou “vícios mundanos”, como prega a cartilha dos Hare. Seu interesse pela filosofia hindu começou aos 16, quando trombou com devotos em uma avenida de Nova Iorque durante férias em família. Havia uma abertura à religião: Jorge gostava de ouvir a banda straight edge Youth of Today, liderada por Ray Cappo, que virou devoto nos anos 1990 e criou o estilo Krishna-core com a banda Shelter. Dúvidas dançavam sobre a sua cabeça: por que o mundo é do jeito que é? Não há outra maneira de fazer as coisas? Em um dos passeios pela cidade, comprou uma biografia de Prabhupada, fundador da ISKCON, em um sebo e leu de cabo a rabo. Antes de voltar ao Brasil, já havia parado de comer carne. Foi mais ou menos nesta época que o rapaz virou o guidão e fez uma curva definitiva na vida. Encontrou-se.

Ele já trepidava pelas vielas da adolescência, quando a busca por um sentido é urgente. Enveredou-se pelo contrafluxo. Trazia em si, desde o berço, a introspecção e uma natureza contemplativa que lhe definem bem à primeira vista. Mas quem o conhece se incomoda se o descrevem com a cabeça nas nuvens. Goura não é sempre zen, tampouco um iogue otimista movido a filosofia barata. É, em certa medida, um rapaz cuja ponderação, auto-controle e diplomacia fazem queixos cair. Muitos o descrevem como uma pessoa iluminada, um sábio da urbe que trabalha bem intermediando conflitos e opiniões contrárias. “Não sei se quero ter esse papel de conciliador. Eu quero simplesmente ser, agir. Compartilho de uma visão schopenhauriana: o mundo é o caos. É violento, é feio, é horrível, na verdade. A gente pode aumentar essa feiúra e os conflitos ou a gente pode ter um papel de buscar sínteses e harmonizações”, resume. Por anos, sua postura foi de guerrilha: nos governos Ducci e Richa, chegava a ir à casa dos políticos, não por convite, mas para cobrar mudanças na cidade, construção de ciclovias, fazer barulho, enfim. Durante a campanha de 2012, a Cicloiguaçu entregou aos candidatos à prefeitura uma carta compromisso pedindo aos postulantes que incluíssem em suas planos de governo para tornar Curitiba uma cidade mais amigável para os ciclistas. Quando Gustavo Fruet, do PDT, foi eleito, pedalou na companhia de Goura e outros ciclistas até o Palácio 29 de Março para ser empossado. Para alguns, a relação que se construiu entre Fruet e Goura foi uma pequena decepção, como se o cicloativista tivesse anestesiado sua veia crítica ao apoiá-lo e se relacionar de maneira mais institucional com o executivo em vez de manifestações nas ruas.

A sua bússola, no entanto, aponta para a mesma direção há 20 anos. Uma inquietude está sempre a lhe queimar o peito, mas agora não se alivia mais com grito-no-microfone, como nos tempos de adolescente. “Depois da paternidade ele enraizou. As ações deixaram de ser mais abstratas para concretizarem algo. Uma das primeiras foi o Jardim de Sofia, que nasceu junto com a nossa primeira filha [em 2009, oficializado pela prefeitura em 2012]. Não era mais um grito, colar cartaz, essas coisas. Depois veio a Praça [de Bolso do Ciclista], essas conversas todas com o poder público, a candidatura... e agora ele está lá dentro”, relembra a esposa Elenice Guimarães, num tom de voz baixo e sorridente. Ela também é uma figura admirada: terapeuta ayurvédica, integrante do coletivo Saia de Bici, ativista por uma maternidade ativa e guardiã dos saberes sagrados femininos. Estão juntos há seis anos e além da bicicleta e do yoga, têm duas filhas: Sofia, de cinco, e Tulasi, de quase três.

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Independentemente das avaliações alheias de que seu modus operandi evoluiu ou se descaracterizou, Goura continua sua busca incessante por mudanças – coletivas, de preferência. Não há freios, só equilibrío entre a teoria e a prática: o que lhe importa é estar em movimento. Solucionando. Organizando. Goura é a personificação do gerúndio. Ele descreve sua estratégia como a ação das raízes de uma árvore: qualquer brecha é bem-vinda. Um avanço lento, insistente e inexorável conquista pequenas distâncias e então não há retrocesso que seja grande demais.

O Cabeção lidera

Foi um guri quieto, leitor dos livros que o pai, o jornalista Jaques Brand, lhe presenteava, com a casa da mãe, a psiquiatra Margarida Oliveira, sempre cheia dos colegas da escola. Não lhe faltam hoje amigos que o conhecem desde “este tamanho aqui”, quando ele ainda era um menino rechonchudo que todos chamavam de Jorge. De vocalista e guitarrista de bandas contestadoras a assessor da coordenadoria de mobilidade urbana da Setran, por onde ele passou teve um protagonismo discreto, porém notável. Quando era adolescente, chamavam-no de “Cabeção” pelo tamanho da cabeça e pela atividade cerebral. Depois das bandas de hard core, veio o interesse pela desobediência civil por pessoas como o filósofo e pedagogo austríaco Ivan Ilitch e no agricultor urbano brasileiro Claudio Oliver. “O Jorge é uma pessoa muito cerebral. E ao mesmo tempo ele tem uma luz diferente. Ele não é o cara que tem o dom de fazer; ele é um bom idealizador de ideias. Ele as executa também, mas ele consegue convencer as pessoas a fazerem as coisas acontecer, mas de um jeito positivo. Ele paira por cima dessas coisas”, diz o primo Brunno Covello, que o fotografou para este texto. A boa oratória é um empurrão para a liderança natural que Goura tem. “É um cara muito claro ao se expressar e bem pragmático. Isso o coloca à frente [dos movimentos, como a bicicletada], mas ele é comum, não é pedante, não coloca as coisas de uma maneira inalcançável”, analisa Marcos Hadlich, um dos responsáveis pela documentação em vídeo dos quatro dias do 3.º Fórum Mundial da Bicicleta, em fevereiro de 2014.

Goura estudou os estóicos na graduação. Fez mestrado em Schopenhauer. Cita Espinosa, Nietzsche, Sêneca em uma mesma conversa. Sua erudição é de pasmar. Tem o dom de falar com quem quer que seja sem alterar a voz, mas apresenta um cacoete quando parece estar no limiar da impaciência: desloca o ombro esquerdo em direção à orelha e fala olhando para os lados, sem completar as frases. Mais desconfortável que isso é difícil flagrá-lo, mas há coisas que lhe tiram do prumo. Um desses momentos raros foi durante a abertura do Fórum, quando uma turma do Movimento Passe Livre se reuniu para vaiar o prefeito, que comparecia à solenidade para demonstrar simpatia à causa e interesse em discutir formas de tornar Curitiba mais ciclável. Ninguém sabe como Goura desceu tão rápido do palco, venceu a distância até o grupo no meio de um mundaréu de gente e deu de dedo nos agitadores.

É o lado menos popular dele, tanto que nenhum dos amigos consegue descrever com precisão outro estado de espírito que não seja a serenidade. “Para nós, o Goura sempre foi um iluminado, ele tem um negócio…” titubeia o amigo que o conhece desde o jardim de infância. “As mulheres com quem convivi não pensam assim”, brincou “o iluminado”. Ele morou com duas namoradas antes de casar-se com Elenice e a primeira filha nascer. Sofia e Tulasi são o grude do pai, principalmente depois que ele assumiu o cargo na Setran. Uma vez por mês Goura vai com a família para um sítio em Anhangava, seu refúgio da vida em meio ao concreto. Em uma manhã de sábado após o desjejum, as meninas chamam-no a cada dez minutos. Querem lhe mostrar uma folha, um inseto, tomar mais iogurte, arrancar picão da barra da calça do pai. Há quem diga que é preciso uma paciência de Jó para aguentar sozinho o pique de duas crianças soltas no mato e um pouco de austeridade, mas Goura se rende a alguns caprichos da mais nova com a mesma tranquilidade com que passa um café. Sua fala é pausada e baixa; a paciência é outra lição do ioga. Também esta é uma das características que o fazem um bom orador e porta-voz, atributos desejáveis em um político. Brincando com um guardanapo molhado enquanto bebe uma cerveja de trigo, Goura examina as possibilidades que o futuro lhe reserva. “Quando você faz 13 mil votos em uma eleição federal, tem toda uma pressão para que se candidate a vereador. É um caminho bem possível, mas eu quero ter a liberdade de chegar em 2016 e dizer… hm, não”.

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