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Joarez, Rafaela e Celanira: tristeza deu lugar à alegria | Fernando Ramos/Agência RBS
Joarez, Rafaela e Celanira: tristeza deu lugar à alegria| Foto: Fernando Ramos/Agência RBS

Lembranças

Aposentada cria cantinho especial com fotos e objetos pessoais da filha que se foi

As maquiagens ainda estão no banheiro. No quarto, os perfumes e cremes que ficaram nos frascos. A cama segue arrumada e, sobre ela, está um coração de pelúcia que Clarice Izabel Simões Côrte Real, 47 anos, deu à filha Carolina Simões Côrte Real, 18 anos, vítima da Kiss.

Contrariando quem a aconselhou a se mudar da casa onde morava com a filha mais nova – Clarice tem um filho de 29 anos que não vive mais com ela – a cozinheira aposentada decidiu permanecer no lar onde Carol, como a jovem era conhecida, cresceu. As lembranças estão por toda parte, mas a mãe da vítima da tragédia ainda criou um cantinho no qual distribuiu fotografias e objetos pessoais de Carolina.

"Se eu saísse dessa casa, acho que o vazio seria ainda maior. Quando estou mal, entro no quarto dela, sinto o cheirinho que ficou nas roupas e me sinto melhor", comenta Clarice, que é viúva há 13 anos.

Ela conta que se permite sorrir, mas que ainda não conseguiu sentir nenhum momento de felicidade plena. "A cada dia que acordo, sinto a falta que ela me faz. Penso no sucesso que ela teria, porque era competitiva, determinada, ia se formar em Tecnologia dos Alimentos no ano que vem", diz.

A mãe de Carolina tentou participar de sessões em que outros pais de vítimas dividiam suas experiências. "Não consegui. O sofrimento dos outros pais mexia muito comigo, não me fazia bem", comenta.

Clarice lembra que, todos os anos, a família costuma se reunir para as festas de fim de ano. Em 2012, foi diferente, a jovem pediu que ela e a mãe ficassem em casa. As duas comemoraram sozinhas. "Foi uma espécie de despedida entre nós duas. Desde a tragédia, para mim, é como se fosse o primeiro dia. Mas estou fazendo o que posso para viver. Tenho outro filho, um neto, uma família que me ama e precisa de mim", diz.

Fim de ano. Famílias reunidas. Seja com a casa cheia ou só com os mais chegados, esta é uma época repleta de emotividade. Em um ano marcado pela tragédia da boate Kiss em Santa Maria (RS), que completou 11 meses na última sexta-feira, é difícil que o assunto fique fora das conversas entre familiares e amigos das vítimas e dos sobreviventes do incêndio. É mais difícil ainda que as emoções não venham à tona. Foi o primeiro Natal sem a companhia do ente querido, será a primeira virada de ano sem poder desejar-lhe o que todos buscam: felicidade. Por mais que se queira levantar e reconstruir – a cidade inclusive –, as cicatrizes da morte de 242 pessoas doem, principalmente, nas famílias envolvidas na tragédia.

Pais de Rafaela tiram do quarto a ilusão da volta

O notebook na frente do qual Rafaela Schmitt Nunes, 18 anos, passava a maior parte do seu tempo não pôde mais ficar no quarto onde ela dormia com uma das irmãs. Toda vez que a dona de casa Lenir Schmitt, 49 anos, entrava em casa, via o computador e sentia como se a qualquer momento a filha, morta na Kiss, pudesse voltar a usá-lo. Era uma dor forte demais para suportar.

Lenir e o marido, o técnico em telefonia Jorge Alberto dos Santos Nunes, 50 anos, ainda não conseguiram se desfazer das roupas da jovem, que estão dobradas nas gavetas nas quais ela as deixou. Algumas das inumeráveis fotografias que Rafaela gostava tanto de tirar foram reveladas e espalhadas pela casa, outras não chegaram a ser colocadas em porta-retratos, mas estão bem pertinho, para serem manuseadas sempre que bate aquela saudade.

Nunes, que fez 50 anos no dia em que a filha morreu, ainda não conseguiu forças para voltar a trabalhar. Ele passa a maior parte do tempo em casa, mas busca manter a cabeça ocupada para não ficar pensando sempre no que aconteceu.

"No dia da tragédia, nossa outra filha, a Renata, chegou e me disse que nós dois teríamos de ser fortes para poder ajudar a minha mulher. Foi isso o que fiz. Fui o mais forte que consegui. Mas aí chegou um momento em que desabei. Então, fui procurar ajuda psicológica", conta Nunes.

Força interior

Segundo ele, a família deve passar este fim de ano reunida. A proximidade do nascimento de Pietro, o primeiro neto, previsto para fevereiro, tem sido motivo para que eles queiram ainda mais conseguir uma forma de recomeçar.

"Tem noites que a Lenir ainda acorda chorando. Procuro ajudá-la. E, às vezes, essa ajuda não é falar, nem ouvir, é simplesmente mostrar que estou perto, é abraçá-la, fazê-la ter certeza de que pode contar comigo", diz Nunes.

"Ela queria muito ser feliz. Lutava por isso. E sempre queria também ver felizes aqueles que estavam a sua volta. Isso é uma motivação para nós. Não torna as coisas mais fáceis, mas é uma motivação", afirma Lenir. A dor pela ausência da filha fica evidente em seu olhar, que ainda muito se enche de lágrimas.

Neta nasce no dia em que filho faria aniversário

O último dia 5 de junho seria um dos mais difíceis da vida da professora de literatura Celanira Dariva, 58 anos, e do marido dela, o artista plástico Joarez João Dariva, 69 anos. Nesta data, o filho caçula do casal, o economista Ricardo Dariva, completaria 24 anos. Mas foi justamente neste dia, no que eles consideram uma homenagem ao jovem morto na tragédia da Kiss, que nasceu Rafaela, a primeira filha de Paula Dariva, a filha mais velha de Celanira e Joarez.

"Enfrentamos muitas perdas. Primeiro foi a nossa sobrinha, que teve leucemia, depois o pai do Joarez, que já tinha 96 anos, o Ricardo, e a mãe do Joarez, de 97 anos. Todos eles moravam nessa mesma casa. Foi muito sofrido, mas acredito que uma perda foi nos preparando para a outra. O nascimento da Rafaela, no mesmo dia do aniversário do Ricardo, foi uma grande bênção", afirma Celanira.

Joarez trabalha em casa e se manteve bastante ativo mesmo após a tragédia. Ela também preferiu não parar e até confessa que quis pegar algumas atividades a mais, para manter a cabeça ocupada. "Há momentos de pico. Tem horas que sinto muita vontade de chorar, então choro bastante. Mas meu filho era a coisa mais alegre que existia. Ele era muito da natureza, gostava de fazer rapel, de música, de cachoeira, de praia. Sei que ele não queria nos ver tristes, por isso, depois deste fim de ano, nas férias, vamos em busca de algumas dessas coisas que ele gostava. Quero viver feliz para ele", diz Celanira.

Amparo

Desde a morte de Ricardo, os pais do jovem, que são casados há mais de 30 anos, têm sido o apoio um do outro. "Quando um está muito triste, o outro ajuda, e assim a gente vai indo, um dia de cada vez", conta Celanira.

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