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Todo Natal é a mesma coisa para a historiadora Eduméia Coelho da Silva, 32 anos. A família reunida tenta convencê-la a pedir transferência do colégio onde leciona, o Laís Peretti, localizado nas rebarbas do Pinheirinho, vizinho do Xapinhal, e trabalhar numa das duas escolas municipais do Bairro Alto, onde mora. Ela desconversa – mesmo sabendo que ao voltar para casa, em dias de expediente, vai ter de recorrer a algumas das estratégias que lhe ensinaram para escapar da violência. À noite, por exemplo, precisa usar farol alto, para que os traficantes pensem que é um carro da polícia e a deixem passar sã e salva.

A Escola Municipal Laís Peretti fica num capão, paisagem típica do tradicional Pinheirinho, bairro que contabiliza 30 conjuntos populares. Um deles é o do Pirineus, bem em frente do colégio que Eduméia dirige há dois anos e meio. Está todo pintado, há flores nas sacadinhas e dá até para ver algumas antenas de tevê por satélite nas janelas. Essa paisagem é a promessa do que o local poderia ter sido e não foi. No descampado, atrás dos prédios, o que se vê são casebres miseráveis, habitados por carrinheiros, uma terra de ninguém disputada por pelo menos duas gangues – "a do lado de cá e a do lado de lá da ponte", simplifica um morador.

Volta e meia, a diretora coloca algumas das 34 professoras da escola dentro do seu carro e as leva para visitar a família dos alunos. "Elas ficam pasmas ao ver que as crianças não têm nem como tomar banho", conta. Em geral, Eduméia acaba ganhando aliados depois dessas expedições. Formou um pequeno exército no Pirineus, apesar das constantes derrotas. Só este ano, a instituição que abriga 550 estudantes de 1.ª a 4.ª série foi assaltada cinco vezes. Perdeu tevê, computador, rádio, filmadora. As janelas são protegidas por grades de ferro. É comum até os vidros serem roubados, assim como relógios de água e portões. E já houve perseguição policial dentro do Laís Peretti – além de professor ameaçado. O texto do agressor era o esperado: "Eu sei onde você mora".

Por essas e outras, no início deste ano, ao participar do seminário que implantou em Curitiba o Comunidade Escola – programa da Unesco que recomenda a abertura dos colégios de periferia nos finais de semana – Eduméia esteve entre as que tomaram a palavra. A mulher pequena, que adora bichinhos de pelúcia presos na janela do automóvel e cores alegres, destacou-se entre as que mais brigaram bravamente para que a instituição em que trabalha há oito anos entrasse para o projeto piloto. Saiu vitoriosa na queda-de-braço com cerca de oito concorrentes de sua regional. Ao todo, o Comunidade funciona em nove colégios, desde meados de maio, e já mobilizou cerca de 37 mil pessoas. Até o final do ano devem ser 35 escolas municipais filiadas. O convênio com a Unesco deve ser assinado nos próximos meses. "Se não chover", bolsas para voluntários e demais participantes vão ajudar a proposta a ganhar asas.

O motivo de Eduméia e mais quatro coordenadoras para se disporem a encarar também aos sábados e domingos um batente de seis horas foi uma estatística da qual pretendem fazer parte: os índices de violência despencam onde o programa da Unesco é aplicado. No estado de São Paulo, com o nome Escola da Família, em sete meses o projeto reduziu em 56% os homicídios nas redondezas das escolas, registrou 39% menos roubos de equipamentos e 16% menos ocorrências policiais. E com uma solução muito simples. Nos dias em que crianças e adolescentes mais estão sujeitos ao que de pior acontece nas ruas – de ser atropelado a envolver-se com drogas – a escola do bairro fica aberta para recebê-los, oferecendo oficinas, esportes, cultura para eles, seus vizinhos, seus familiares. Vira a praça que o bairro não tem.

Antes de 14 de maio, quando o Comunidade Escola começou, a praça do Pirineus era atrás da escola – um lugar que ninguém por ali recomenda, por ser considerado ponto de droga. Agora, a praça são as quadras e salas do Laís Peretti. Um final de semana chega a reunir 600 pessoas, 30% adultos, atraídos por oficinas que vão de flores artificiais, bijuterias e auto-ajuda. Ainda não há estatísticas sobre os benefícios do programa. Só o que se sabe é que no feriado de Corpus Christi – quando a visita de ladrões era dada como certa – o colégio dormiu em paz. Se continuar assim, Eduméia vai ter muito assunto para a próxima noite de Natal.

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