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A saga da broa de centeio

A nutricionista e historiadora Juliana Reinhardt, 32 anos, encontrou na culinária um caminho para falar da presença alemã em Curitiba e, por tabela, do legado luterano. Em sua dissertação de mestrado, defendida no Departamento de História da UFPR em 2002, discorreu sobre a Padaria América, fundada em 1913 por Eduardo Engelhardt e logo transformada num ponto de referência dos alemães

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A Alemanha não fica muito longe daqui. Partindo do Centro em direção à Praça Garibaldi, basta virar a esquina da Igreja do Rosário dos Pretos, botar os pés nos paralelepípedos da Trajano Reis e só parar quando deitar os olhos na Igreja do Cristo Redentor, na Padaria América e no Clube Concórdia. É um bom começo de viagem. Há 141 anos, um grupo de alemães vindos da Colônia Dona Francisca, em Joinville, fez mais ou menos o mesmo itinerário, enxergando no sobe-e-desce do Alto São Francisco a nova pátria que procurava.

Ficaram por ali, assim como já tinham feito em outro descampado – o Pilarzinho. Pelo que se sabe, Curitiba nunca mais foi a mesma, tornando-se a mais alemã das capitais brasileiras. E, por tabela, a mais luterana. Não se sabe com precisão, mas é provável que entre 70% e 90% dos germânicos que se fixaram na capital no século 19 eram seguidores de Martinho Lutero – o que lhes rendeu uma dor de cabeça do tamanho da igreja do Castelo de Wittenberg.

A começar pela proibição de serem enterrados no mesmo cemitério dos católicos, para quem os loiríssimos alemães eram hereges. Que fossem sepultados bem longe, em outro Alto – o Alto da Glória –, área que por ironia viria a se tornar um dos pontos mais nobres da cidade. Merece uma visita. Suba a Avenida João Gualberto. Ao chegar à Praça Goethe, procure a Travessa Lutero, siga em frente e descubra-se na porta do belíssimo Cemitério dos Luteranos. Depois do Alto São Francisco, arrisca ser esse o endereço mais germânico da cidade.

Mas Curitiba já foi muito mais despudoradamente alemã do que é hoje. A imigração durou da década de 1850 à década de 1930. Segundo o historiador da UFPR Sérgio Nadalin, 64 anos, o número de imigrantes não foi contabilizado, mas só ao interior chegaram 100 mil alemães. Na capital, algumas famílias se estabeleceram no setor de comércio – particularmente panificadoras e mercearias – forrando o Centro com fachadas tão famosas quanto difíceis de ler: batizava-se o estabelecimento com o sobrenome do proprietário. E vire-se o freguês.

Outra área de atuação tipicamente germânica era a de serviços. Ser alemão virou sinônimo de ser artesão, oleiro, cervejeiro, empreiteiro, habilidades que os transformou em figurinhas facéis em toda e qualquer alteração urbana que se fazia em Curitiba. Foi o que bastou para consolidar a crença de que eram mais desenvolvidos do que os de outras etnias. Na década de 30, os alemães chegaram a ser donos de mais de 50% dos estabelecimentos comerciais e industriais da cidade.

Mas é preciso relativizar esse cálculo. Nadalin lembra que a Alemanha da primeira metade do século 19 não tinha passado pela Revolução Industrial. Os imigrantes que viviam nas cidades desenvolviam atividades artesanais e naturalmente repetiram a dose no Brasil. Mas não era regra. "Não podemos esquecer dos agricultores que se tornaram chacareiros do Pilarzinho", comenta o estudioso, cujo acervo de história da família luterana em Curitiba e região, iniciado em 1970, contabiliza 12 mil fichas, 33 mil nomes, de até três gerações. É material o bastante para apinhar a sala que ocupa na UFPR.

Embora o mito do alemão urbano por natureza não sobreviva, o do alemão próspero vai muito bem, obrigado, ilustrado por nomes como Hauer, Müller, Strobel e Garmatter. Para Nadalin, o segredo desse sucesso é simples: trata-se de um povo extremamente associativo, capaz de criar clubes e grupos para qualquer sorte de atividade. "Brinca-se que onde existem dois alemães existem três associações", diz. Só em Curitiba, o pesquisador somou cerca de 50 entidades fundadas pelos germânicos, como a Sociedade Rio Branco e a Thalia. "Ser protestante é uma experiência muito forte. Implica em ser ousado, reformador, contestador", reforça o pastor Marcos Antônio da Silva, 39 anos, em atividade na Igreja Cristo Redentor.

Graças ao gosto pelas atividades gregárias, os alemães alcançaram outro feito no imaginário curitibano – o de pessoas da cultura. Justifica-se: além de ideais para o progresso econômico, as sociedades fundadas a torto e a direito se tornaram sob medida para abrigar eventos artísticos, colocando os germanos na boca de cena.

Mas nem sempre tem música no ar. Nos primeiros cem anos de luteranismo em Curitiba, o pano caiu tantas vezes que a proibição de usar o mesmo cemitério que os católicos virou poeira do passado. Houve um forte sentimento antigermânico durante a Segunda Guerra, quando a comunidade viu serem confiscados seus terrenos na Praça 19 de Dezembro e na área onde está hoje do Hospital de Clínicas. Em paralelo, veio a proibição de falar alemão em locais públicos.

Em momentos de catacumba como esse, restou aos alemães ampararem-se no que não podiam ser ultrajados – o luteranismo. A Igreja do Redentor – há 113 anos de portas abertas – funcionou como trincheira para cantar "Noite Feliz", o "Tannenbaum", prosear na língua dos pais e manter-se protestante. Como consolo, tinham o cheiro de broa de centeio vindo da Padaria América, logo ao lado do Redentor. Era o que bastava para que os estrangeiros se sentissem de novo em casa – em plena Trajano Reis com a Carlos Cavalcanti. Delícia de História.

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