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Reza a lenda que, no fim dos anos 90, quando os representantes da montadora Renault deram uma festa para selar a parceria com o governo do estado do Paraná, os franceses de primeira viagem ofereceram um show com artista que cantava... em inglês. Desaforo. Parte da platéia teria engolido a seco e na hora da recepção deu o troco: rasgou o francês lascado, estudado na Aliança Francesa.

O episódio – um entre muitos que ligam a cidade com os gauleses – é sob medida para a comemoração dos 60 anos de fundação da Aliança em Curitiba (AF) – festejados em 2005. De tão cultuado em determinados circuitos locais, arrisca o idioma de Baudelaire (e Asterix, claro) funcionar como uma espécie de código secreto, revelado quando menos se espera: Je parle! É o que basta. Em seis décadas de AF foram 6 mil alunos que em menor ou maior grau venceram a timidez, fizeram biquinho e ganharam batalha do verbo être, do conditionnel – e voilà – sentiram-se em pé de igualdade, liberdade e fraternidade com a turma que freqüentou as sedes da Prudente de Morais, da Praça do Expedicionário (hoje desativada) ou qualquer uma das muitas que já teve desde 1945, quando tudo começou.

São bons requisitos ter dito bonjour para a secretária e prata da casa Rose Marie Deffes ou, com sorte, freqüentado alguma aula da mítica Hélène Ginvert, a madame Garfunkel – matriarca da Aliança, morta em 1982. Mas a confraria AF tem mais tentáculos do que o polvo gigante de 20 Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne, por coincidência um dos idealizadores do projeto AF, nos idos de 1883, ao lado, entre outros, do químico Louis Pasteur.

A escola de línguas criou relações duradouras com os maiores colégios católicos franceses da cidade – aqui instalados nas duas primeiras décadas do século 20, época em que tendo de investir na educação dos filhos, e podendo pagar por isso, o negócio era mandá-los para o Nossa Senhora de Sion, Nossa Senhora de Lourdes, Sacre-Coeur ou Colégio Santa Maria. Logo, estudar num desses lugares era indiretamente fazer parte da Aliança. E, para muita gente, fazer parte da AF significava ganhar um passaporte para o mundo. Melhor, para a França, o que já significou mais ou menos a mesma coisa.

O tal do "passaporte" não vinha de nenhum consulado, mas por influência de madame Garfunkel. Por pelo menos três décadas a mecenas usava um método infalível para identificar que alunos recomendaria para ganhar bolsas de estudos no exterior – o faro. A lista de beneficiados passa pelo ex-governador Jaime Lerner, pelo ex-prefeito Saul Raiz e pela historiadora Cecília Westphalen, entre outros.

Para Maria Eliza Ferraz Paciornik, atual presidente da Aliança Francesa, Curitiba tomou o rumo que tomou também graças à associação franco-brasileira. "As bolsas da Aliança ajudaram a formar a cara da cidade a partir dos anos 70. Foi na França que os urbanistas do Ippuc aprenderam a manter uma avenida como a Marechal Deodoro estreita num trecho, para conter os carros, e a impulsionar o transporte coletivo", comenta, sobre os bons fluidos daqueles exílios parisienses.

Os programas de bolsas minguaram, madame Garfunkel saiu de cena, mas a Aliança não perdeu aquele charme discreto de sempre. Hoje são 700 alunos, sendo 58% estudantes e 42% profissionais liberais. Inclua-se na conta um grupo da "resistência francesa", formado majoritariamente por mulheres bem-comportadas. São falantes de alta patente e suas conversações ocorrem duas tardes por semana. Tudo transcorre com o romantismo da primeira vez. Marilene Ribas Gonçalves, por exemplo, entre idas e vindas contabiliza 30 anos de Alliance Française, sua paixão confessa. "A simpatia pelo francês vem dos meus tempos de Sion", avisa, recorrendo ao colégio centenário cujo nome é sinônimo de falar quase sem sotaque e comportar-se segundo os rígidos códigos de etiqueta. Arrisca que nem na França o serviço fosse tão bem-feito.

No café da AF, misturadas à moçada de piercing e com mechas de cabelo colorido, as resistentes da Aliança ajudam a formar a melhor imagem da festa dos 60 anos da casa. Sem dizer que presenteiam o ambiente com perfume, digamos, francês.

Diferença

Viviane Ribeiro, a Vica, um dos 14 professores da associação, pisou na Aliança pela primeira vez aos 7 anos de idade. Certa vez, caiu na classe de madame Garfunkel. Foi o tal do dia para não mais esquecer. Engenheira de formação, a diretora da AF tinha pendores também para as Letras e para a Filosofia. Ou seja, falava de tudo – o que deixava a moçada de olho grudado na mulher que podia começar com um dictée e acabar no pensamento de Blaise Pascal. "Ela tinha tudo o que se podia esperar de uma professora", lembra, ao traduzir por que Aliança e alta cultura combinam tão bem quanto queijo com goiabada. "Nossos alunos são diferentes. Estão atrás de algo mais", afirma.

A estimativa é que 70% dos matriculados na Aliança sejam estudantes de Direito. Raro uma turma que não tenha um médico. Quando não um jovem que decidiu ser bom o bastante em cinema ou literatura e viu que não chegaria longe sem passar uma temporada nos 790 metros quadrados da sede da Prudente de Morais, uma espécie de República da França num quarteirão que é sossego só – apesar da "Rua dos Chorões" logo ali. "Já recebi um aluno que disse ter se matriculado porque queria ler Rabelais no original. E outro que era ouvinte de um tipo raro de jazz que só toca na França", ilustra Vica.

No café da Aliança, no térreo, onde coabitam as senhoras de fino-trato e colegiais com cabelos espetados, o interesse por Rabelais, Sarah Bernhardt, Sartre, Brigitte Bardot ou o que mais possa lembrar o melhor da França, divide espaço com outras preocupações. Entre um gole e outro há quem diga estar em busca de um diferencial no mercado de trabalho. É o caso de Giovanna Michelotto, 16 anos. Ela faz uma maratona de idiomas com mais três amigas – juntas cursam Aliança, Goethe e Cultura Inglesa. Na escola, tem quem estranhe a escolha das garotas e solte um "fala aí para eu ver". "O francês gera muita curiosidade", diverte-se Gabriela Tomasi, 14.

Não é de estranhar. Na tradicionalíssima Aliança, sobrevivem o jeux de rôle – encenações para treinar a língua – e a prova oral. Mas nem tudo é sempre igual. Por esses dias, o assunto era os banlieues – os jovens da periferia de Paris que deram de queimar carros para protestar contra a política de exclusão do governo. Discutiu-se à beça. Em francês, claro, língua oficial naquele pedaço do quarteirão. E não se discute. Pas mal!

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