Vaticano divulga relatório sobre ex-cardeal McCarrick| Foto: CHIP SOMODEVILLA / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / AFP
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O Vaticano divulgou, nesta terça-feira (10), um dossiê acerca das acusações contra Theodore Edgar McCarrick, ex-cardeal da Igreja Católica nos Estados Unidos, que ocupou o posto de arcebispo em Washington e foi expulso do sacerdócio, em 2019, após ser acusado de abuso sexual a menores e adultos por décadas, além de abuso de poder. McCarrick tem, hoje, 90 anos.

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Nesta quarta-feira (11), o papa Francisco se manifestou sobre o relatório. O pontífice prestou solidariedade às vítimas de abuso e reafirmou o compromisso de erradicar o mal de Igreja Católica. “Renovo minha proximidade às vítimas de todos os abusos e o compromisso da Igreja em erradicar este mal”, disse o papa.

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O Relatório sobre o conhecimento institucional e o processo decisório da Santa Sé em relação a McCarrick (de 1930 a 2017) foi divulgado dois anos após o papa Francisco ter autorizado uma investigação interna a respeito do caso, a fim de “apurar todos os fatos relevantes, para colocá-los em seu contexto histórico e avaliá-los objetivamente”.

O documento contém atividades, realizações e viagens que afetaram todas as decisões da Santa Sé, além do conhecimento de indivíduos e instituições acerca do assunto ao longo dos últimos anos. No relatório, os entrevistados descrevem vários episódios, como situações de abuso ou agressão sexual, atividade sexual indesejada, contato físico íntimo e o compartilhamento de camas supostamente sem toque físico por parte do ex-cardeal. Há também relatos sobre o abuso de autoridade e poder de McCarrick.

O ex-cardeal foi nomeado bispo em 1977, durante o pontificado de Paulo VI. Em 2017, vieram à tona acusações formais de que ele havia abusado sexualmente de menores. McCarrick se tornou conhecido por ser um “bom arrecadador de fundos”, tanto em nível diocesano quanto para a Santa Sé. O relatório afirma não haver “evidências de que o costume de McCarrick dar presentes e doações impactou decisões significativas feitas pela Santa Sé com relação a McCarrick durante qualquer período”.

Embora o relatório de 460 páginas seja, originalmente, focado em documentos do Vaticano e cartas, as informações contidas no dossiê também foram coletadas por meio de 90 testemunhos. Entre as pessoas ouvidas, estão ex-funcionários da Santa Sé, cardeais e bispos nos Estados Unidos, ex-seminaristas e padres de várias dioceses.

João Paulo II recebeu informação "incompleta e imprecisa" sobre atitudes de ex-cardeal, diz dossiê

O dossiê informa que, nos anos 1980, época em que McCarrick subiu na carreira eclesiástica, primeiro como bispo de Metuchen e, depois, arcebispo de Newark, ele recebeu amplos elogios, sendo chamado de bispo “inteligente e zeloso”. A Igreja concluiu, portanto, que “nenhuma informação crível surgiu sugerindo que ele tivesse se envolvido em qualquer má conduta”. A decisão do papa João Paulo II de nomeá-lo a vários cargos foi baseada em sua “formação, habilidades e realizações”, afirma o documento.

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À época da indicação, pessoas que conheceram McCarrick em diferentes fases de sua vida foram consultadas pelo Vaticano, em uma espécie de verificação informal, sendo questionadas, por exemplo, se o então cardeal era “suficientemente qualificado no ofício pastoral de pregação”, se era “dedicado à Santa Sé e suas doutrinas”, se sua conduta era “exemplar e acima de qualquer suspeita” e se ele tinha “caráter suficientemente forte para o cargo”. O ex-cardeal, segundo informa o dossiê, foi “muito bem-sucedido” em suas atribuições, não sendo “causa de escândalo de qualquer tipo”.

Há registro, por outro lado, de que algumas das pessoas consultadas expressaram “preocupação” de que McCarrick poderia ser “excessivamente ambicioso” por ser promovido na hierarquia eclesiástica. O documento também fala em “raras referências” acerca de sua “falta de franqueza”, mas não dá maiores detalhes.

As primeiras evidências de alegações sobre a conduta sexual de McCarrick chegaram ao Vaticano anos antes de o papa João Paulo II tê-lo nomeado como arcebispo em Washington, em 2000. Na época, o cardeal-arcebispo de Nova York, John O’Connor, registrou parecer negativo sobre a indicação de McCarrick. Embora tenha afirmado não ter provas concretas sobre sua conduta sexual, O’Connor considerou, em carta ao Núncio Apostólico, um erro a nomeação do então cardeal, com risco de “um grave escândalo”.

No entanto, um padre ex-diocesano de Metuchen afirmara ter observado a conduta sexual de McCarrick com outro padre em junho de 1987, episódio em que McCarrick teria tentado se envolver em atividade sexual com um sacerdote naquele verão. Além disso, uma série de cartas anônimas enviada à Conferência de Bispos Católicos dos Estados Unidos, ao núncio apostólico e a vários cardeais norte-americanos entre 1992 e 1993 acusava McCarrick de pedofilia com seus chamados “sobrinhos” – o relatório explica que o ex-cardeal utilizava a palavra “sobrinhos” em referência a adolescentes e rapazes com os quais ele viajava, numa espécie de “piquenique anual de verão” realizado na época de seu aniversário, conhecido como “Dia do Tio Ted” ou “Dia do Tio”; o documento também informa que alguns dos rapazes compartilharam uma cama com McCarrick durante essas viagens e na residência do então bispo, em Metuchen.

Uma das pessoas entrevistadas para o relatório ainda afirmou ter enviado, em anonimato, uma carta aos membros da hierarquia eclesiástica de Metuchen, em 1980, na qual teria demonstrado preocupação acerca da conduta de McCarrick com menores, incluindo seus filhos. Ela afirma que o ex-cardeal “tinha um interesse estranho por meninos” e que “tocava ou acariciava os meninos de uma maneira que ela sentia ser impróprio”. Durante as viagens com os chamados “sobrinhos”, McCarrick ainda teria fornecido cerveja a dois de seus filhos, afirmou a entrevistada.

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À época, João Paulo II determinou que fosse feita uma investigação para determinar se as alegações eram verdadeiras; mais tarde, as principais denúncias foram consideras “não críveis” e faltosas de prova por sua “natureza limitada”, informa o relatório da Santa Sé. Os bispos entrevistados nesse inquérito confirmaram que McCarrick já “havia compartilhado uma cama com jovens homens, mas não indicaram com certeza se ele se engajou em qualquer má conduta sexual”, diz o dossiê.

A Igreja também afirma “nunca ter recebido denúncia diretamente de vítima sobre a má conduta de McCarrick”. E, por essa razão, as alegações poderiam “plausivelmente” ter sido caracterizadas como “fofoca politicamente motivada“ ou “boatos”. Segundo o Vaticano, por meio da investigação realizada para a preparação do relatório, agora, sabe-se que três dos quatro bispos americanos ouvidos durante a investigação promovida por João Paulo II teriam fornecido “informações imprecisas e incompletas” à Santa Sé sobre a conduta sexual de McCarrick. “Esta informação imprecisa parece provavelmente ter impactado as conclusões dos assessores de João Paulo II e, consequentemente, do próprio papa”, revela o documento.

Antes de definitivamente nomeá-lo arcebispo de Washington, em 2000, João Paulo II recebeu uma carta na qual McCarrick se defendia das acusações, afirmando nunca ter tido “relações sexuais com ninguém, homem ou mulher, jovem ou velho, clérigo ou leigo”. Ele também disse nunca ter cometido abuso de poder ou tratado qualquer pessoa com desrespeito. A carta foi tida como crível pela Santa Sé, e na época ficou compreendido que, “se as alegações contra McCarrick se tornassem públicas, ele seria capaz de refutá-las facilmente”.

O único indivíduo, na época, a alegar má conduta sexual do ex-cardeal teria sido tratado como “informante não confiável”, em parte porque “ele próprio já havia abusado de dois adolescentes”, informa o relatório, embora não mencione provas de que o denunciante abusou sexualmente de outros indivíduos.

“Ao longo de duas décadas de ministério episcopal, McCarrick foi reconhecido como um bispo excepcionalmente trabalhador e eficaz, capaz de lidar com tarefas delicadas e difíceis, tanto nos Estados Unidos quanto em algumas das partes mais sensíveis do mundo”, diz o dossiê.

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Ex-cardeal desrespeitou pedido de Bento XVI para que se mantivesse mais recluso

Segundo o relatório, no início do papado de Bento XVI, as informações acerca da conduta sexual de McCarrick eram “geralmente semelhantes” às informações já disponíveis a João Paulo II.

Em 2005, com base em novos detalhes relacionados às alegações, o documento afirma que a Santa Sé procurou “urgentemente” um sucessor para McCarrick em Washington, e o papa Bento XVI solicitou que o então cardeal se aposentasse “espontaneamente”.

“Observando que as alegações permaneceram sem comprovação, e reconhecendo que apenas o papa poderia julgar um cardeal sob a lei canônica, Carlo Maria Viganò, núncio nos Estados Unidos, sugeriu que um processo canônico poderia ser aberto para determinar a verdade e, se garantido, para impor uma ‘medida exemplar’”, diz o relatório.

A Santa Sé informa, no documento, que o processo canônico teve andamento e, em lugar disso, “a decisão tomada foi apelar à consciência e ao espírito eclesial de McCarrick, indicando-lhe que ele deveria manter um perfil mais modesto e minimizar as viagens, pelo bem da Igreja”.

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O documento lista os fatores que influenciaram Bento XVI a não iniciar um processo canônico formal: “não houve alegações credíveis de abuso infantil; McCarrick jurou, sob seu ‘juramento como bispo’, que as alegações eram falsas; as alegações de má conduta com adultos eram relacionadas a eventos na década de 1980; não havia tido indicação de má conduta recente [...]”. Na ausência de sanções canônicas ou “instruções explícitas” do papa, McCarrick continuou suas atividades nos Estados Unidos e no exterior.

Perto do fim do papado de Bento XVI, em 2012, com novas alegações a respeito da conduta sexual de McCarrick, o núncio Viganò foi instruído a “tomar certas medidas, incluindo uma investigação com funcionários diocesanos”, para determinar se as alegações eram críveis. O relatório informa que “Viganò não deu esses passos e, portanto, nunca se colocou em posição de verificar a credibilidade das alegações”.

Expulsão de McCarrick do sacerdócio

No início do papado de Francisco, em 2013, não foram fornecidos ao papa informações ou novas indicações relacionadas às alegações contra McCarrick, diz o documento. “O papa Francisco tinha apenas ouvido falar sobre alegações e rumores relacionados à conduta imoral com adultos ocorrida antes da nomeação de McCarrick para Washington”, informa o relatório.

Considerando que as “alegações sobre o caso já haviam sido revisadas e rejeitadas pelo papa João Paulo II”, Francisco não viu “necessidade de alterar a abordagem adotada em anos anteriores”.

Em junho de 2017, a Arquidiocese de Nova York recebeu denúncias de abuso sexual por parte de McCarrick contra um menor, fato ocorrido nos anos 70. “Pouco depois que a acusação foi considerada crível, o papa Francisco solicitou a renúncia de McCarrick do Colégio de Cardeais. Na sequência de um processo penal administrativo, McCarrick foi considerado culpado de atos em violação do Sexto Mandamento do Decálogo envolvendo menores e adultos, e com base nisso foi demitido do estado clerical”.

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Tribunal nos EUA divulgou relatório sobre “padres predadores”

Em 2018, a Suprema Corte da Pensilvânia divulgou um relatório, mais tarde conhecido como “300 padres predadores”, no qual acusou cerca de 300 padres de abuso sexual contra pelo menos mil menores, em crimes supostamente encobertos durante décadas pela Igreja Católica. Esses sacerdotes, segundo os investigadores, seguiam uma espécie de código de conduta não oficial para enterrar os casos e abafar o escândalo.

Outro dossiê, divulgado dias depois de o relatório da Suprema Corte vir a público, trouxe novas acusações de suposto acobertamento da Igreja a abusos sexuais. As acusações são direcionadas a uma série de arcebispos que ocuparam e ocupam posições-chave no Vaticano durante décadas. Eles teriam, em conjunto com vários outros bispos e cardeais, se articulado para encobrir abusadores e promover alguns deles.

*Leia o relatório completo abaixo:

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]