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Ivanise Esperidião da Silva, fundadora da Associação Mães da Sé, ao lado da foto de Fabiana: “O que mais revolta é saber que o país tem um cadastro atualizado e eficiente de veículos roubados, mas não há nada em relação às pessoas que desaparecem | Rubens Cavallari/Folhapress
Ivanise Esperidião da Silva, fundadora da Associação Mães da Sé, ao lado da foto de Fabiana: “O que mais revolta é saber que o país tem um cadastro atualizado e eficiente de veículos roubados, mas não há nada em relação às pessoas que desaparecem| Foto: Rubens Cavallari/Folhapress

Tragédia pessoal

Angústia contada em segundos

Todos os anos, quando chega o mês de dezembro, a alagoana Ivanise Espiridião da Silva começa uma contagem regressiva. O ritual não é de ansiedade pelas festas de Natal ou pela possibilidade de rever parentes nas férias. É de tortura, pela proximidade com o dia 23 de dezembro, data em que sua filha mais velha, Fabiana, desapareceu em uma rua de São Paulo, após ir à casa de uma amiga, em 1995. Desde então, Ivanise nunca teve uma única informação sobre o paradeiro da menina, com 13 anos na época.

"No último dia 23, me sentei e peguei uma calculadora. Eu contei dia por dia, hora por hora, segundo por segundo, quanto tempo tinha se passado desde que a minha filha desapareceu. A dor era tanta que eu achei que iria morrer ou ficar louca", diz Ivanise, num choro entrecortado por soluços que deixa a reportagem, do outro lado da linha, sem palavras. Voz, no entanto, é o que não lhe falta.

Depois de quatro meses de depressão, choro e raiva, Ivanise criou a Mães da Sé, que se reúne todo segundo domingo do mês nas escadarias da Catedral da Sé, no centro de São Paulo, para pedir providências da sociedade sobre seus desaparecidos. Em 16 anos, o cadastro da entidade registra mais casos do que o oficial, com 2.567 casos resolvidos e 209 óbitos.

"Esta é a minha vida. Depois do sumiço dela, eu me separei, entrei em depressão, tive dois enfartes. Mas se eu desistir, quem vai lutar pela minha filha e pelos filhos de outras pessoas?", questiona Ivanise, que no dia anterior à entrevista tinha passado toda a noite na Cracolândia, em busca de pistas de uma criança desaparecida que poderia estar por lá. A dedicação é tanta que seus médicos a obrigaram a tirar férias, sob o risco de ela sofrer um novo colapso.

Para Ivanise, a atitude dos governos em relação aos desaparecidos – ausência de estatísticas, de comunicação, de campanhas de prevenção – é de causar revolta. "Vejo isso como um descaso com a minha dor e de várias mães espalhadas pelo Brasil. Não desejo isso para ninguém, mas só passando por isso para saber o quanto dói essa indiferença."

Como proceder

O que fazer quando alguém desaparece:

- Sempre registre o boletim de ocorrência. Somente com ele é possível iniciar as investigações sobre o paradeiro da pessoa. Não é necessário ir a uma delegacia especializada. Caso haja uma unidade apenas para este fim na sua cidade, o boletim será encaminhado até este local.

- No caso de crianças e adolescentes, não é necessário esperar até 24 horas após o desaparecimento para o início das buscas. A Lei 11.259/2005, chamada de Lei da Busca Imediata, determina o início das investigações logo após o registro do B.O.

- Ofereça à polícia detalhes precisos a respeito do desaparecido, como a aparência física, a roupa com a qual ele estava vestido e outras características – se tem piercing, tatuagem, cicatrizes, etc. Também informe sobre os hábitos diários da pessoa – onde costuma ir, onde trabalha e os horários de saída e volta para casa.

- Com a popularização das mídias sociais, é possível fazer a divulgação do caso também na internet. Sempre divulgue a foto da pessoa e um número para contato, mas peça orientação da polícia.

- Caso exista, na sua cidade, uma organização engajada em descobrir o paradeiro de pessoas desaparecidas – como o Mães da Sé, em São Paulo –, faça contato. Tais grupos, pela experiência no assunto e pela rede de contatos que formam, são uma ajuda valiosa.

- Se conseguir alguma pista, repasse à polícia. Mas cuidado! Muitas vezes, as informações podem ser trote ou conter armadilhas.

- Se você reconhecer uma pessoa ao olhar o retrato dela, pode fazer a denúncia através do Disque 100, mantido pelo governo federal, e que garante anonimato do denunciante. Também é possível entrar em contato com a delegacia ou o conselho tutelar mais próximo.

- Não tente agir antes da chegada da polícia, mas guarde detalhes a respeito de onde o desaparecido foi visto, quais as características da pessoa com quem ele estava e avise imediatamente as autoridades competentes.

Fontes: Ministério da Justiça, Rede Nacional de Pessoas Desaparecidas, Mães da Sé e Sicride.

O Estado não compartilha a dor das famílias de desaparecidos no Brasil. Ao menos essa é a impressão que as autoridades passam ao não tratar com seriedade um tema que afeta milhares de lares brasileiros todos os anos. Cerca de 200 mil crianças, adolescentes e adultos somem anualmente – na maioria dos casos sem deixar vestígios –, segundo o relatório final da CPI dos Desaparecidos, aberta no Congresso em 2009.

Uma ferramenta criada para dar agilidade às investigações sobre desaparecimentos é o retrato do descaso do Estado. O Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Desaparecidos, lançado pelo Ministério da Justiça na internet em 2002, jamais recebeu atualização. A listagem tem apenas 1.203 casos registrados desde que a contagem passou a ser feita, em 2000. Destes, 559 foram solucionados e 644 ainda estão em aberto. A estimativa da CPI é que 40% do total de desaparecidos por ano, ou seja, 80 mil são menores de idade.

Outra lista – o Cadastro Na­­cional de Pessoas Desaparecidas, que deveria reunir casos de indíviduos com mais de 18 anos – foi lançada no dia 26 de fevereiro de 2010, mas, quase dois anos depois, nem sequer entrou no ar. Isso em um país onde as estatísticas revelam que espantosos 20% dos desaparecidos jamais retornam para casa – vivos ou mortos –, para a angústia da família, que convive com uma dúvida eterna.

"Os cadastros são um primeiro passo, pois permitem que se trace um perfil dos desaparecidos, como idade, sexo e classe social. A partir disso é possível não apenas aprimorar a busca, mas também trabalhar na prevenção. No entanto, não basta criar o cadastro, é preciso mantê-lo atualizado, levar essa política a sério, saber que atrás desses números há vidas", afirma a vice-presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da seção paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil, Mayta Lobo dos Santos.

Sem um sistema confiável, muitas vezes, quando uma criança não identificada aparece em um abrigo ou na rua, a delegacia e o Conselho Tutelar local nem sequer imaginam que ela pode estar sendo procurada em outro município ou estado. Também não é possível ter imagens atualizadas de envelhecimento facial digital ou um banco de DNA, promessas antigas de vários governos.

Revolta

"O que mais revolta é saber que o país tem um cadastro nacional atualizado e eficiente de veículos roubados, mas não há nada em relação às pessoas que desaparecem, ao ser humano", diz a ativista Ivanise Esperidião da Silva, fundadora da Associação Mães da Sé, que acolhe e auxilia parentes de desaparecidos em São Paulo desde 1996. Ivanise, que não tem notícias da filha Fabiana há 16 anos, conta que articulou a criação do cadastro de adultos junto ao governo e chegou a ver um esboço dele, mas até hoje espera o lançamento.

O Ministério da Justiça alega que o cadastro de crianças não é atualizado porque as delegacias responsáveis pelos casos nos estados não repassam as informações e que o de pessoas adultas está em fase de aprimoramento antes de ser aberto para consulta pública. Argumentos que não convencem Ivanise, que em 15 anos à frente da entidade registrou em São Paulo mais casos de desaparecimento do que o governo em todo o país – 7 mil contra os 1,2 mil oficiais. "Não é falta de dinheiro ou de gestão, é falta de vontade, de se colocar no lugar do outro. Eles não sentem a dor que nós sentimos", sentencia.

Carência

Faltam delegacias especializadas e mais psicólogos

No que diz respeito à investigação de crianças desaparecidas, o Paraná é citado como exemplo por entidades e profissionais ligados à área. Desde 1995, o estado conta com o Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas (Sicride), única delegacia especializada em todo o país.

No entanto, a situação não é tão confortável quanto aparenta. No estado, casos de crianças desaparecidas no interior não são tratados com a mesma agilidade e eficiência como os da capital, onde fica o Sicride. Mesmo que a delegacia tenha sido criada para atender a todo o estado, na prática, há uma série de dificuldades por causa da falta de recursos humanos e pela distância geográfica.

"A estrutura não pode ficar centralizada na capital", opina o promotor de justiça Murillo José Digiácomo, que defende a criação de mais unidades como o Sicride e de setores especializados dentro das delegacias.

O caso do assassinato de Joseane Moraes, de 9 anos, em Cambé (Norte do Paraná), no ano passado, é um exemplo do despreparo da polícia para lidar com esse tipo de situação. Os pais da menina levaram três dias para registrar o boletim de ocorrência e, de acordo com a família, as buscas não começaram imediatamente, embora a Lei 11.259/2005 determine investigação imediata. O caso acabou solucionado, mas a menina foi morta. Outras unidades especializadas, segundo o promotor, poderiam inclusive ajudar no trabalho de prevenção, por meio de palestras, divulgação de cartazes e atendimento prioritário.

Psicólogos

Digiácomo também cita a falta de psicólogos para atender pais de desaparecidos como outro problema estrutural. Esses profissionais são necessários por vários motivos: aliviar o sofrimento enquanto duram as buscas; confortar quando a família descobre que a criança está morta; atender a própria criança em casos de abuso; e promover a retomada dos laços afetivos quando ela fugiu de casa devidos a maus-tratos, inclusive para evitar a reincidência.

O Sicride conta com apenas um psicólogo, que atende às famílias durante as buscas, mas não há acompanhamento após a solução dos casos. Porém, o profissional não tem condições de se deslocar para o interior do estado e nem sempre é ele a pessoa que ouve a criança no depoimento – no caso do crime de Cambé, coube aos investigadores a tarefa de ouvir as crianças da vizinhança, o que não é aconselhável, segundoespecialistas.

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