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Quem circulou pela PUCPR por esses dias, imaginou por um minuto que três batidas de carros andaram abalando a rotina do câmpus. A cena é inesperada: foram colocados à mostra veículos demolidos em trombadas, pelo que tudo indica, cinematográficas. O "cemitério de automóveis" improvisado no Prado Velho – sempre rodeado de curiosos – não assopra na ferida. Acidentes de trânsito estão entre as maiores causas de morte no país. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), são 350 feridos por ano, 30 mil mortes e gastos, também anuais, de R$ 10 milhões. Pedestres correspondem a 50% dos óbitos.

Tão impressionante quanto a sucata que mexe com a paisagem da universidade é saber que quem se esconde por trás da proeza é um filósofo – Antonio Santos Neto, 32 anos, diretor do curso de Filosofia da instituição e coordenador do curso seqüencial em Educação e Gestão de Trânsito e Transporte. "Trazer os carros batidos foi iniciativa dos alunos", desconversa.

Na terça-feira, num bate-papo provocado pela reportagem da Gazeta do Povo em alusão à Semana Nacional do Trânsito, Antonio Santos Neto se tornou o parceiro inesperado de dois profissionais que têm no vaivém de carros e pedestres sua matéria-prima. De um lado da mesa ficou a engenheira civil Rosângela Battistella, 49 anos, uma década e meia de serviços prestados ao setor. Ela é hoje gerente de engenharia de trânsito do Diretran. Do outro, o arquiteto e urbanista paulistano Evandro Cardoso dos Santos, 45, cuja tese de doutorado trata de espaços de acessibilidade. Muitos dos futuros urbanistas do estado passam pela tutela de Evandro, que leciona no curso de Arquitetura da PUCPR.

O filósofo, a engenheira do Diretran e o professor de Urbanismo têm em comum não só a paixão indisfarçável pelo movimento de carros e de pedestres que regem a cidade. Dividem, também, um sonho comum: o de ver o trânsito andar nas bocas de Deus e todo mundo, virando conversa na ordem do dia. "A máquina é perfeita. Os carros respondem aos nossos comandos e nunca tivemos tantos recursos e leis. O problema é o homem", provoca Neto.

Informação e propaganda mudam o comportamento dos motoristas e dos pedestres? Eis a questão. Para Antonio dos Santos, a resposta é "não". "O trânsito reflete o movimento da vida", conceitua. Embora reconheça o poder da propaganda, o filósofo lembra que mudar comportamentos é uma tarefa inglória, ainda mais quando do outro lado do ringue está uma indústria poderosa, com outdoors de dar água na boca. "Todo sujeito, quando faz 18 anos, ganha o direito de dirigir. Mas nem todos nasceram para o trânsito. Essa passagem está no imaginário social e é muito forte. E, para ajudar, comprar um automóvel é a coisa mais fácil do mundo", lembra Neto. Conduzir veículos virou sinônimo de vida adulta, de status, de conquista pessoal e a publicidade reforça esses valores.

É Evandro quem faz o resumo da ópera: o trânsito é um espaço coletivo, mas o motorista o trata como um espaço privado, isola-se quando está na direção. O individualismo que rege o ritual de bater a chave na ignição, engatar a primeira e ir em frente recebe aplausos. Estima-se que a cada dia o mercado automobilístico jogue 300 novos carros na cidade. Multiplicado por 30 dias, por 12 meses e por cinco anos, esse número é de fazer pedir carona em disco voador. Fere as leis da Física. "A cidade é finita e parece que não nos damos conta disso. Numa cidade como São Paulo, por exemplo, o carro já se tornou o inimigo público número um", frisa Evandro.

"Dentro de um carro o motorista sente que pode ultrapassar seus limites. Ele se sente maior, amplificado. Imagina ter uma armadura medieval e um inimigo a derrubar", diz o filósofo.

Rosângela – que volta e meia trabalha na sinalização do entorno de escolas – traz o papo para o asfalto nosso de cada dia ao lembrar dos cuidados das mães com o trânsito quando estão na frente da escola de seus filhos. Muito bem. "O que nem sempre se repete quando estão na frente do colégio dos filhos dos outros, onde passam a 120 por hora". Motorista individualista – eis o problema, concorda o trio, num quase manifesto. O veredito vem de Evandro: "O brasileiro é excelente piloto. E péssimo motorista. Dirige bem, mas na hora de interagir com os outros motoristas, não se sai bem".

O resultado da queda-de-braço entre o fascínio pelo automóvel e seu uso homicida-suicida-fratricida é que soluções urbanas que incluam a bicicleta, as caminhadas, e principalmente do uso mais maciço do transporte público, costumam ser tratadas como utopias. Grande engano. Evandro Cardoso dos Santos tira da cartola exemplos de cidades que resolveram parte de seus problemas de poluição, decadência, engarrafamentos infernais e outras mazelas usando ora duas rodas ora o coletivo. É o caso de Lisboa, onde um sistema de aluguel de bicicletas mudou a cara do centro da cidade. Ou de Londres, que iniciou uma força-tarefa para reduzir o número de carros na área central. O ônibus é a solução.

Parece radical demais para os brasileiros – loucos por carro. Mas Rosângela Battistella tranqüiliza: não se trata de terrorismo dos alternativos. "O ideal é a variedade, é multiplicar as possibilidades de transporte", explica a técnica. A engenheira trabalha com trânsito desde 1981 e teve o privilégio de durante vários anos acompanhar cada etapa da implantação de sinalizações e programas viários em cidades de médio e pequeno porte. O bastante para apostar que quanto mais possibilidades de sair de casa e se deslocar, melhor.

Lisboa, Londres e as variantes do trânsito, contudo, não respondem à pergunta que abriu o colóquio. Como mudar comportamentos? E responder é não só preciso, como urgente. "A mais de 60 quilômetros por hora, um monte de ferro de dois mil quilos projetada contra 70 quilos de carne não deixa muita chance", chama Evandro à razão. Proposta: proteger o pedestre a qualquer preço.

Campanhas mais agressivas – que mexam com os hábitos – seriam de bom grado, pondera Antonio dos Santos Neto. A dos automóveis avariados expostos na PUCPR é um exemplo. A cruz da estrada – sinalizando que ali morreu um motorista – leva os pés ao freio, como a mais poderosa das campanhas. "Tem de ser eficiente. Quer um exemplo? A gente continua vendo crianças no banco da frente. E olhe quantas campanhas foram feitas". Sistema de transportes coletivos, capazes de cobrir as necessidades, também entram em pauta. "Só vamos mudar alguma coisa quando nos libertarmos da escravidão do automóvel".

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