• Carregando...

São Paulo (AE) – Lá vem o seu Carlos. Como todo dia, às 8 horas ele chega na mesma portaria do hospital, com a mesma sacola surrada da rede Peg & Faça em punho e a mesma missão: a de quebrar galhos de pacientes internados no Hospital São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Há quase três anos, ele passa as manhãs recolhendo voluntariamente receitas médicas, enfrentando filas em postos de saúde, marcando consultas em ambulatórios públicos. Tudo para os outros. E também não deixa de distribuir o jornal Metrô News para distrair 179 pacientes hospitalizados e mais uns cem funcionários do lugar.

A história desse samaritano começou em 1998, quando a "finada Juddi", sua companheira de décadas, teve de se submeter às primeiras sessões de hemodiálise – processo que substitui a função de filtrar o sangue dos rins. "Quando vi que a coisa ia ficar preta, não pensei duas vezes em acelerar minha aposentadoria para acompanhar minha mulher", conta Carlos Alberto Ribeiro de Oliveira, 58 anos, o seu Carlos, um ex-funcionário do Metrô.

A coisa ficou mesmo preta. Com o passar do tempo, Juddi começou a ir todos os dias para o hospital, sempre acompanhada do marido. Um dia ela precisou do Hemax, remédio usado para combater a anemia da insuficiência renal crônica. "Como já ia ter de pegar o medicamento no posto, perguntei se alguém mais no hospital precisava de algum remédio por lá", lembra seu Carlos.

Ele levou dez receitas, mas voltou sem remédio. "Foi uma desgraça, não sabia como funcionava a coisa. Era remédio controlado, só ia conseguir pegar com procuração." Ele aprendeu rápido. Não só conseguiu no dia seguinte o Hemax para a mulher, como, desde então, virou representante legal de muitos pacientes.

Foram cinco longos anos de hemodiálise. Em 3 de fevereiro de 2003, Juddi morreu, e seu marido nunca mais deixou o hospital. Depois de tantas vezes fazendo o mesmo trajeto até os postos de saúde, o "serviço", como ele diz, se estendeu à vizinhança. Hoje, ele pega pelo menos dez tipos de remédios e distribui 300 jornais por dia (a sacola surrada chega a pesar dez quilos) e marca consultas nos ambulatórios não só para pacientes e funcionários, mas também para os empregados de lojinhas de roupa, quitandas, farmácias, padarias e camelôs das ruas Botucatu e Pedro de Toledo. "Ele é o único voluntário que conheço que não trabalha para uma instituição, mas direto para quem precisa", diz a enfermeira Tatiana Garcia Viana.

Humor em alta

O samaritano não se impressiona com quase nada nessa altura da vida. "Claro que é difícil um dia você trocar confidência com uma pessoa e no outro saber que ela morreu. Mas só o que me entristece de verdade é ter perdido minha mulher", conta. Não é bem assim. No setor de pediatria, ele acelera o passo para não precisar ver "gente tão pequenininha sofrendo".

Mas seu humor está sempre em alta. Tão em alta, que chega a incomodar. Nas duas primeiras horas dessa reportagem foram 43 "bom dia", "e aí mano?", "oi, gata", "como vai, senhora?", "na manha garoto?", e "fala aí, meu". O tipo de cumprimento variava de acordo com o rosto do interlocutor.

Com saúde de ferro, ele nunca usou um só remédio. "Deus me livre contar pra qualquer pessoa do hospital se tenho uma dorzinha de cabeça. Eles já querem logo fazer um monte de exames." Nas ruas em torno do hospital, as gentilezas são outras. "É só eu entrar num comércio que eles já me oferecem um cafezinho, um pastel ou um desconto", conta, orgulhoso. "Nesse Natal ganhei muita camisa." O último presente foi uma cesta básica de Natal de um dos policiais militares que dão plantão no hospital, em troca da amoxilina retirada no posto. "Mas não penso em recompensa. Dá pra viver bem com minha aposentadoria. Esse serviço de ajudar os outros é minha vida. Não fosse ele, entraria em depressão."

Seu Carlos ganha R$ 300 por mês e mora sozinho. "Chego em casa, vejo Sessão da Tarde na tevê e durmo um pouquinho. Depois leio as receitas do dia, distribuo os remédios na cama e organizo tudo. Minha cama é boa pra isso, cama de casal", conta. "Durmo cedo, pego ônibus às 6."

Metódico, ele gosta de saber bem o que vai pegar no posto de saúde. Quando não entende a letra de uma receita, vai até uma das farmácias perto do hospital para pedir a tradução. "Caligrafia de médico é fogo. Quando não dá pra ler, o pessoal da farmácia que está acostumado me ajuda. Ninguém nega meu pedido." Nos ambulatórios, ele ganha amostras de remédios, que distribui. Também não lhe faltam ofertas de sacolas mais ajeitadas. "O próprio hospital já me ofereceu mochila pra facilitar. "Não aceito de jeito nenhum. Não sou bobo de chamar a atenção de bandido com uma mala bacana. Remédio vale ouro."

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]