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A revolução corria solta pela Europa em 1848. Na Rússia, o czar Nicolau se apavorou. Como podia se pensar em uma república, eleita por homens? “Essa loucura”, dizia ele, podia até mesmo tirar a Rússia das mãos dos Romanov. E isso era um absurdo principalmente porque tinha sido Deus que entregou o país para a dinastia. Os revolucionários, no fundo, não estavam indo contra imperadores: estavam indo contra a vontade divina.

Durante muito tempo, usou-se na política o argumento de que alguma coisa devia ser assim “porque Deus quer”. Normalmente é um argumento conservador, claro. No caso do debate sobre o fim da escravidão, no século 19, era isso que estava em discussão, pelo menos do ponto de vista de quem queria manter as coisas como estavam. Como Aristóteles (dois mil anos antes!) defendiam que havia seres humanos destinados ao trabalho servil. E vinha o argumento religioso: Deus quis assim.

Hoje, até por vivermos em um Estado (supostamente) laico, o argumento não cola mais. Mas foi mais ou menos disfarçado na forma de algo, digamos, mais aceitável para nossos tempos. Os conservadores deixaram de ser oráculos divinos para se arrogarem o papel de intérpretes da natureza. Se não é possível defender que “Deus quer” é sempre possível dizer que “a natureza quer” assim ou assado.

O argumento parece mais científico, mas no fundo é só mais um jeito de dizer que não devemos ultrapassar certos limites do que nós “nascemos para ser”. A família tem de ser de certo jeito. A mulher tem de estar em tal lugar. O sexo precisa respeitar tais e tais limites. E se ultrapassarmos esses limites, não estaremos indo contra uma opção política: e sim contra o que a própria natureza das coisas.

A primeira dúvida é: alguém tem como interpretar o que a natureza quer? Indo um pouco mais longe: a natureza “quer” algo? Se você quiser, dá até para esquecer essas duas perguntas, e ir direto para a que mais nos interessa: mesmo que a natureza “queira” alguma coisa (e que a gente consiga descobrir o que é), será que o melhor é seguir esse plano?

Na natureza, as famílias se formam de certa maneira, os animais se acasalam de certa forma e as fêmeas têm esse ou aquele papel. Mas na natureza vale matar quem nos ataca. Vale comer os próprios filhotes. Vale lutar até a morte pela fêmea. Vale trucidar o grupo inimigo sem clemência. Vale muita coisa que, aparentemente, não estaríamos dispostos a aceitar para nós mesmos hoje em dia.

Deixar a natureza de lado (em certos pontos) foi justamente o passo que nos tornou civilizados. Decidir com base em nossa vontade, na vontade da coletividade, da nossa cultura o que é melhor faz parte de um processo construído ao longo dos séculos, muito sofisticado e a que damos o nome de democracia.

Seguir o que “a natureza dita” (se é que isso é possível) é uma posição política. Uma posição válida. Uma posição altamente conservadora. Mas que pode e deve ser contestada. Decidir se queremos seguir sendo o que fomos até hoje é um caminho – e apenas isso, só mais um caminho. E há tantas coisas que seria bom se superássemos, se deixássemos para trás nossa natureza violenta, controladora e mesquinha para darmos mais um passo rumo à civilização...

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