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Após os dias tórridos da passagem do ano, São Paulo se tornou mais amena. As férias escolares, o trânsito menos atormentado, os cinemas mais vazios e a temperatura agradável convidavam ao lazer. Assisti a um filme admirável, Amour, no qual dois atores (Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant) dirigidos por Michael Haneke desenvolvem a trama do relacionamento entre um casal de velhos músicos que leva uma vida confortável, para os padrões europeus, embora sem serviços domésticos e isolado dos familiares. Além do mais, contratempos na velhice podem ser sofridos. O derrame da senhora não abala a ternura do marido. Mas o cotidiano é duro: ela tem de ir ao banheiro carregada, o marido tem de dar de comer à sua boca, etc. Diante da piora da saúde da mãe, a filha tem dificuldades para entender e lidar com a situação, denotando mais angústia do que afeição e, quiçá, alguma preocupação material com o que possa sobrar. O genro é insuportável e os netos nem aparecem. Resultado, os dois velhos vão se consumindo num mundo que é só deles entre boas recordações e desespero até um derradeiro gesto de amor.

São assim as relações humanas. Ambíguas, cambiantes, cheias de paixão e ódio. Mas em cada geração, mesmo na tensão e na discórdia, um entende a linguagem do outro. A vivência das mesmas situações cria referências culturais que acolchoam a razão. Foi sob o impacto emocional de Amour que participei de um jantar com o casal Grécia e Roberto Schwarz, amigos de mais de 50 anos. De tempos em tempos nos vemos, mantendo a amizade, embora no campo político estejamos apartados.

Por coincidência, no dia aprazado para o jantar, José Serra (outro amigo com quem convivo há mais de cinco décadas) marcara um encontro em minha casa. Minhas conversas com Serra são longas, de horas a fio. E raramente terminam no mesmo dia, posto que não seja notívago. Serra chegou indisposto. Imaginei que a conversa seria amarrada. Mas logo, com franqueza suficiente para cada um saber o que o outro pensa, fluiu bem. De repente, olhei o relógio e adverti: daqui a pouco chegará o Roberto. Serra permaneceu.

No jantar em um restaurante, começamos a conversa lembrando um amigo comum, Albert Hirschman. O grande intelectual recentemente falecido teve influência enorme sobre todos nós, como pessoa e como intelectual, o que tornava amena a conversa. Ele era uma espé­­cie de renascentista contemporâneo, bricoleur de palavras e ideias, que não apreciava as "grandes teorias", mas que com suas miniaturas lançava luz sobre a história e a natureza dos conflitos sociais e humanos.

Passado o momento de convergências, Roberto me perguntou: quando vocês (em tese) eram socialistas, o que queriam e no que acreditavam? Respondi: nosso objetivo era maior igualdade, o meio para isso seria eliminar a apropriação privada dos meios de produção; tudo mais era secundário, mesmo a liberdade. Pensei comigo: havia variações na esquerda, os trotskistas há muito denunciavam o terror estalinista, embora alguns de seus líderes também o houvessem praticado; a "esquerda democrática", mais liberal, não era comprometida com práticas contra a liberdade. Fiquei pensando: o que tem a ver esta discussão com os dias atuais? Quem ainda pensa em "controle coletivo" dos meios de produção? Só mesmo os nacional-desenvolvimentistas que amam o capitalismo dirigido e identificam o estado com o coletivo, mas nem por isso são de esquerda.

Noutro momento, Roberto, mais fiel às teses clássicas da esquerda, comenta: você não acha que, mesmo sem referência explícita às classes sociais e suas lutas, elas existem e é preciso uma teoria que as situe em função da forma contemporânea de acumulação de capital, inclusive na China? Eu respondo: acho, sim; mas teria de ser proposta uma nova teoria geral do capital e das relações de produção, pois a globalização alterou muita coisa. Não parece que a oposição burguesia/proletariado tenha a vigência que teve no passado. A dissolução do conceito de classe nas "categorias de renda" chamadas classes A, B, C, D, ou nesta "nova classe média", dificilmente se sustenta teo­­ricamente, acrescentei. Outra vez, olhando a atua­lidade, quem, na esquerda, no centro, na direita, ou seja em qualquer lugar do espectro político vigente, pensa nestas questões? O governo do PT é o primeiro a se jactar da expansão das "novas classes médias" e de comemorar os êxitos do capitalismo, ficando envergonhado quando o "pibinho" parece comprometê-los.

Passando de considerações abstratas para terrenos mais concretos, Serra criticou duramente a desindustrialização em curso, os desmandos na administração pela penetração de interesses políticos e clientelísticos, enfim a condução do PT. Ao que Roberto redarguiu como era de esperar: mas houve avanços sociais inegáveis. E eu acrescentei, que começaram no meu governo... Está bem, disse, mas ganharam maior dimensão com o PT. Vejam o acesso às universidades com as cotas. Por fim, cheque- mate: e o mensalão? Ah!, mas é a "direita" quem se regozija com as condenações, embora, sem elas, a Justiça estaria comprometida. Serra, mais incisivo: e o PT é "de esquerda"? Silêncio geral. As categorias com que concordávamos nos inibiam de classificar partidos atuais na escala antiga na qual fôramos formados.

Pode parecer que o desentendimento era geral. Mas não. Conversávamos como quem vivera uma mesma história política e cultural. Era um diálogo entre pessoas da mesma geração, apesar das discordâncias eventualmente existentes. Será que o tipo de diálogo que tivemos faz sentido para as novas gerações? Ou Fernando Gabeira tem razão: as diferenças contemporâneas são comportamentais (ser ou não evangélico, aceitar ou não o casamento gay, ser "verde" ou "jurássico" etc.). O diálogo caloroso e, para nós, interessante, que nos levou insensivelmente a recuar no tempo terá algum sentido para as novas gerações ou, para elas nós seremos "os outros"?

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