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No dia 20 de março, em carta entregue ao Ministro Gilson Dipp, manifestei as razões pelas quais estava me afastando da condição de membro e relator da subcomissão do Senado para a reforma da parte geral do Código Penal. A decisão já havia sido tomada semana antes e aguardava a oportunidade de um encontro pessoal. Enquanto lá estive, apresentei diversas propostas para a parte geral. Muitas delas consolidam entendimentos da doutrina e da jurisprudência, merecendo, portanto, a sua positivação para a melhor aplicação do Direito Penal. Seguem duas delas:

1ª) Combinação de leis sucessivas

Art. 2º (...)

O parágrafo único é renumerado em § 1º e se acresce o § 2º, com a seguinte redação: "Para aplicar a lei mais favorável, o juiz poderá considerar conjuntamente as normas da lei anterior e da lei posterior do que nelas transpareça como mais benigno".

Não prevalece, na boa doutrina, o mito de que a reunião de parte da lei velha com parte da lei nova criaria uma nova lei – o que é vedado ao juiz. Atualmente e em face das garantias constitucionais da proibição da retroatividade da lei mais grave e, consequentemente, a ultratividade da lei mais favorável, torna-se imperativa a fusão sob pena de afrontar o princípio do devido processo legal, também declarado expressamente na Carta Política de 1988.

Nelson Hungria, o imortal coordenador dos trabalhos de redação do Código Penal e seu mais autorizado interprete sustenta que não é possível entrosar os dispositivos mais favoráveis da lex nova com os da lei antiga, pois, de outro modo, estaria o juiz arvorado em legislador, formando uma "terceira lei, dissonante, no seu hibridismo, de qualquer das leis em jogo". No anteprojeto de Código Penal (1961/1963) de sua redação, Hungria vedava a fusão nos seguintes termos: "Para se reconhecer qual a mais favorável, a lei posterior e a anterior devem ser consideradas separadamente, cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao fato" (art. 2º, § 2º). Também contrários à combinação de leis, Heleno Fragoso, Jair Leonardo Lopes e outros.

Mas o pensamento de outros notáveis penalistas, raciocinando à base da Carta Política de 1988, sustentam a viabilidade da reunião de normas das leis sucessivas mais favoráveis e assim aplicá-las em favor do réu. Merecem destaque Aníbal Bruno, José Frederico Marques, Basileu Garcia, Magalhães Noronha, Francisco de Assis Toledo, Celso Delmanto, Damásio de Jesus, Cesar Roberto Bitencourt e Alberto Silva Franco que analisa minuciosamente as posições em conflito.

A lição de Luiz Regis Prado é lúcida e bem fundamentada: para a determinação da lei mais favorável, deve-se realizar um exame cuidadoso do efeito da aplicação das leis – anterior e posterior –, e utilizar-se da que se apresente, in concreto, como a mais benigna ao réu. Uma lei pode favorecê-lo, pela diferente configuração do delito – crime ou contravenção, elementos constitutivos, acidentais; pela diferente configuração de suas formas – tentativa, participação, reincidência; pela diferente determinação da gravidade da lesão jurídica; pela diferente determinação das condições positivas ou negativas de punibilidade; pela diferente determinação da espécie e duração da pena e dos efeitos penais. Eugênio Raúl Zafaroni e Nilo Batista também consideram razoável essa orientação da combinação das leis no procedimento para reconhecer a lei mais benigna.

Em lúcido precedente relatado pelo Ministro Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal decidiu favoravelmente à aplicação das normas combinadas "do que nelas transpareça como mais benigno".

2ª) Concurso aparente de normas

Art. 2º (...)

§ 3º "Quando a um mesmo fato podem ser aplicadas duas ou mais normas penais, aplica-se uma só em atenção aos seguintes critérios: a) a norma especial exclui a norma penal; b) a norma relativa a crime que passa a ser elemento constitutivo ou qualificativo de outro, é excluída pela norma atinente a este; c) a norma incriminadora de um fato que é meio necessário ou normal fase de preparação ou execução de outro crime, é excluída pela norma a este relativa".

Essa proposta tem origem no anteprojeto Hungria, já referido e com a redação acima transcrita. O critério da letra b tem sido adotado pela jurisprudência. A propósito, o verbete nº 17, do STJ: "Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido".

Conforme o meu Curso de Direito Penal - Parte Geral, 4ª ed., RT, há um concurso aparente de normas penais, que sugere a existência de um concurso de infrações penais, quando algumas normas estão umas para com as outras em relação de hierarquia, no sentido precisamente de que a aplicação de algumas delas exclui, sob certas circunstâncias, a possibilidade de eficácia cumulativa de outras.

René Ariel Dotti, advogado e professor de Direito Penal

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