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Depois das críticas que recebeu, a comissão de reforma do Código Penal (PLS 236/2012) resolveu, em 28 de novembro de 2012, sobrestar o prazo para a entrega do relatório final. Sobrestaram. Não arquivaram. O movimento reformador segue seu curso, já sem a afobação vertiginosa de outrora, mas ainda ambicionando virar lei vigente neste país. As discussões foram recentemente retomadas no Senado Federal.

A palavra de ordem desse movimento reformador é a consolidação das leis penais. Tudo o que anda perdido pelo mar infinito das leis esparsas deve encontrar guarida na terra firme do código e compor a parte especial. As razões são, fundamentalmente, a segurança jurídica alcançada ao submeter todos os crimes em espécie ao mesmo sistema, cujos contornos são conferidos pelo que se chama de parte geral do Código Penal e o oferecimento de um catálogo que englobe todos os fatos puníveis no país, a fim de que os cidadãos possam orientar de forma geral os seus comportamentos. É a parte especial que se quer consolidar.

O sentido da parte geral repousa, ao contrário, em sua estabilidade, e não em sua constante alteração. A parte geral, com a sua estrutura sistemática e com enunciação das categorias jurídicas básicas que formam a aplicação da lei penal, as formas de imputação do crime e a determinação da aplicação judicial da pena, é justamente o instrumento que serve à adaptação de eventuais inadequações e dilemas dos delitos em espécie, e isso por meio dos estudos científicos e das decisões judiciais, e não por meio de alterações legislativas. A estabilidade é, aqui, uma garantia de todos os cidadãos, especialmente na parte relativa às categorias da teoria do crime, que não deve se submeter a toda e qualquer alteração empírica.

De outro lado, ouve-se muito a ideia de que é necessário adaptar a legislação penal aos novos tempos. Nossa parte geral não é, contudo, antiquada e nem sequer está em descompasso completo com o que há no resto do mundo em matéria de teoria do crime. O discurso de que temos um código editado no Estado Novo, em 1940, serve, no máximo, em relação à parte especial, já que nossa parte geral foi objeto de reforma em 1984, no contexto de redemocratização de nosso país. Se o reformador daquele tempo resolveu manter a estrutura do legislador de 1940 quanto às formas de imputação do crime, o fez conscientemente. Um erro na parte geral é escandalosamente grave, pois se multiplica em progressão geométrica e espalha seus efeitos por todos os tipos penais da parte especial. Os equívocos da parte especial são, além disso, objeto de constante controle de constitucionalidade, tanto pelos magistrados e tribunais, como pelo Supremo Tribunal Federal, algo que não ocorre, em regra, com as normas da parte geral. Além disso, as normas da parte geral de um código destinam-se, em primeiro lugar, aos seus aplicadores, aos juízes, e não aos cidadãos, e por isso o cuidado técnico deve ser redobrado.

Espero que não tenhamos de assistir ao vergonhoso espetáculo em que a parte geral do Código Penal transformar-se-á em instrumento legislativo ao dispor das contingências. Será o dia, então, em que a lei temporária será o protótipo de lei em matéria penal. Teremos, talvez, de reviver, já em outro contexto, o pesadelo de acre sabor que von Kirchmann lançou aos juristas ao desconfiar da cientificidade do Direito e dizer: "três palavras retificadoras do legislador, e bibliotecas inteiras se transformam em papel velho". Se von Kirchmann conhecesse nosso legislador talvez fosse mais longe e dissesse que também a parte geral de um código pode se transformar, de repente, em papel velho.

Caso as forças políticas realmente indicarem a inevitabilidade da reforma do Código Penal, que ao menos limitem o objeto da reforma à parte especial – e também aqui a discussão deve ser intensa e ampla –, em consonância com o sentido consolidador que a move. Reformar a parte geral do Código Penal não é consolidar, é começar do zero. Um resultado muito diverso daquele que a própria comissão de juristas reformadores afirma querer alcançar.

"Exercer a crítica afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece igualmente fácil a tarefa do legislador." Nem um, nem outro. Todos aqueles que compõem a comissão de reforma do Código Penal instalada no Senado Federal e presidida pelo senador Pedro Taques possuem legitimidade democrática para elaborar um novo Código Penal e é igualmente certo que o legislador possui grande margem de avaliação em relação às complexas decisões que resolve tomar. As canetas dos membros da comissão assinam legitimamente, mas os equívocos vigem em face de todos e as palavras mal redigidas encarceram. A caneta da ciência não possui tinta oficial e não assina em papel timbrado. A nós, da ciência, não resta outra coisa, senão pedir, fundados sobriamente em boas razões jurídicas: deixem a parte geral do Código Penal como está.

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