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Conhecer o direito de determinado país não se resume, por certo, ao conhecimento apenas de suas leis. Conforme expressão cunhada por Clóvis do Couto e Silva, tomada por empréstimo no título deste breve texto, somente a perspectiva histórica permite a compreensão estrutural de um ordenamento jurídico.

Em assim sendo, certo é que o ordenamento jurídico positivado é tão somente um ponto de uma linha que é complementada pela visão histórica e também pelo conhecimento da sociedade estudada e de seus princípios fundamentais. Com o direito civil brasileiro não é diferente.

A edição do Código Civil de 2002, que em 2012 completou 10 anos, é marco paradigmático desta trajetória. Não tanto pelo seu conteúdo, vez que se trata de projeto concebido décadas antes de sua aprovação, mas, especialmente, por ser nova ferramenta de trabalho do jurista, iluminado pela compreensão sistemática do direito seguindo, portanto, os mandamentos constitucionais.

Significa dizer que ao direito civil brasileiro foi apresentado novo viés de compreensão que, mesmo tímido em inúmeros pontos sensíveis, trouxe a possibilidade de se enxergar o novo a partir de lentes igualmente novas. Ora, a mudança paradigmática perpassa a crise entre dois paradigmas, e o Código Civil brasileiro, conquanto não inteiramente inédito e precursor em seu conteúdo, trouxe a esperança de renovação.

Não se trata, por óbvio, de aplaudir a manutenção de soluções anacrônicas e em desconexão com a realidade social e cultural brasileira, vício que parecia atingir de maneira evidente o Código Civil de 1916, extremamente marcado pela inconteste influência do Code Civil e do Bürgerliches Gesetzbuch (BGB). Ocorre que, e na trilha da concepção da comissão presidida pelo professor Miguel Reale, a preservação das soluções implementadas pelo Codex anterior, somente e nos limites da medida do possível, representa o respeito e a solidificação de uma cultura jurídica que se pode dizer nacional.

Embora o direito civil não se confunda com o Código Civil (desmentido a ilusão de Napoleão, para quem o seu código era sinônimo de direito civil), não se pode fechar os olhos ao fato de que este é fundamental e polarizador da análise do ordenamento jurídico pátrio neste ramo do direito. Daí porque a compreensão do código e de seu papel é fundamental à compreensão do fenômeno jurídico.

Veja-se, ainda, a preocupação da comissão, composta por juristas de qualidade indiscutível, em estabelecer melhorais necessárias em pontos específicos, em especial quanto a um desapego à nomenclatura que, contraditoriamente, havia marcado o rígido e formal Código de 1916 (a confusão entre invalidade e ineficácia, e entre prescrição e decadência são ótimos exemplos disso).

As promessas consubstanciadas nas diretrizes do atual código já foram amplamente discutidas. Agora, com a distância de 10 anos desde sua vigência, podem-se pensar os reflexos do Código Civil de 2002 na solidificação do caminhar do direito civil brasileiro, abstraindo-se de concepções meramente genéricas e afirmando-se a concreção de seus mandamentos.

A opção pela técnica legislativa das cláusulas gerais bem representa o arcabouço instrumental de operacionalização do código que completa 10 anos. E os tribunais, em especial o Superior Tribunal de Justiça (STJ), têm aplicado com competência e justiça referidos mandamentos abertos de conduta. Destaca-se, entre eles, aquele que diz respeito ao princípio da boa-fé objetiva, sendo esta talvez a "inovação" mais relevante do diploma legal.

A positivação do princípio em um texto legal não é, por certo, novidade no Direito brasileiro. Ocorre que a possibilidade aberta pela sua inclusão expressa no Código Civil rompeu com qualquer dúvida derivada do silêncio do legislador civil. Em um ordenamento típico da civil law, quanto mais positivado o Direito, mais fácil a sua compreensão por seus operadores. O relevo dado ao princípio, seja na jurisprudência, seja nos estudos doutrinários, somente demonstra o acerto da afirmação.

Incluído tanto na Parte Geral do código, como no Livro das Obrigações, o princípio da boa-fé ultrapassou as barreiras da sua localização geográfica, imprimindo seus mandamentos em todos os ramos do Direito Civil. Trata-se tanto de regra de interpretação como norma de conduta, de forma que todo e qualquer direito protegido pelo código, e para além dele, há de ser exercido em consonância com os ditames da boa-fé.

O Código Civil de 2002, completa 10 anos de vigência, é um código pautado no princípio da boa-fé. Os erros, por certo, existem, mas os acertos têm sido mais relevantes e somente demonstram a afirmativa com que se abriu este breve texto: a lei escrita é uma parte do Direito, mas a relevância maior está na forma pela qual esta é aplicada, e não na leitura estrita e literal de seus termos.

* Este artigo é um dos oito selecionados no Concurso Jurídico Cultural, realizado pelo caderno Justiça e Direito, no final do ano passado.

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