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O voto do ministro Edson Fachin, no recente julgamento da ADPF 378, fez menção à ideia de filtragem constitucional para fundamentar o entendimento de que sua proposta de interpretação da Lei 1079/1950 não substanciava ativismo judicial mediante a criação de procedimento não previsto em lei, mas sim tratava de um exercício de releitura do direito legal já existente a partir dos princípios e valores constitucionais.

A noção de filtragem constitucional desenvolveu-se num momento do direito brasileiro que ficou conhecido como a fase da “dogmática da efetividade”. Ela desempenhava a tarefa de tentar superar os discursos provenientes de setores conservadores da sociedade que desconfiavam da nova ordem jurídica instaurada pela Constituição de 1988, sustentando não existir condições políticas, econômicas, ideológicas e até mesmo jurídicas para a sua plena realização. Ainda era muito comum, nos primeiros anos após a promulgação da nova Constituição, encontrar afirmações no sentido de que ela era um simples documento político destituído de força normativa e, portanto, só era vinculativa de acordo com a vontade e conformação do legislador. Esses discursos ainda estavam fundados nas ideias de um direito positivista, pautado exclusivamente em regras, desvinculado de questões morais e cujo protagonista era a lei.

A filtragem constitucional cuidava de tentar inverter esta lógica defendendo uma perspectiva pós-positivista em que (i) a Constituição não deveria ser compreendida apenas como um conjunto de princípios e direitos desprovidos de eficácia, totalmente à disposição da boa vontade do legislador ordinário, (ii) que ela possuía uma normatividade própria, superior e vinculante, mesmo em relação aos princípios e normas ditas programáticas, (iii) que o Poder Judiciário poderia ter acesso a esta normatividade constitucional através da lei ou, de forma direta, sem ou contra a lei, (iv) que todas as normas constitucionais, mesmo aquelas demandantes de regulamentação ou políticas públicas, deveriam produzir ao menos uma eficácia jurídica mínima (derrogatória ou prestacional, vinculada ao mínimo existencial), (v) que toda interpretação e aplicação do Direito deveria ser constitucional, (vi) que a compromissoriedade e pluralismo axiológico da nova Constituição não eram defeitos e fruto de assistematicidade do texto constitucional, mas reflexo de uma decisão por certa concepção de democracia plural e (vii) que o texto analítico não era desnecessário (mas, antes, produto cultural e consequência da compromissoriedade).

Assim, a filtragem constitucional tomava como eixo a defesa da força normativa da Constituição, da necessidade de uma dogmática constitucional principialista, do desenvolvimento de novos mecanismos de concretização constitucional, do compromisso ético dos operadores do Direito com a Lei Fundamental e da dimensão ética e antropológica da própria Constituição, conduzindo a uma constitucionalização do direito infraconstitucional com caráter emancipatório.

O voto do ministro Fachin, como se viu, utilizou a filtragem constitucional para defender, coerentemente, a ideia de que o procedimento do impeachment, definido em lei de 1950, estava desatualizado e, em diversos aspectos, possuía incongruências com a ordem constitucional em vigor. Em face da noção de supremacia constitucional seria necessário e legítimo lançar mão da filtragem para reler e reconstruir o sentido da lei a partir dos valores e princípios da Constituição de 1988. Com isso, atualiza-se o sentido das normas infraconstitucionais através da normatividade constitucional, sendo certo que esta tarefa não demanda manifestação legislativa prévia eis que o Judiciário não precisa de autorização para aplicar leis já existentes e nem para interpreta-las em conformidade com a Constituição.

Alguns aspectos em relação à forma da utilização da filtragem constitucional pelo STF merecem breve destaque.

O ministro Fachin, com acerto, atualizou o conceito de filtragem constitucional para reconhecer que o processo de constitucionalização do direito não deve se limitar à utilização exclusiva do texto formal da Constituição mas deve, também, abarcar uma parametricidade ampliada, conhecida como bloco de constitucionalidade, aí incluindo-se os tratados internacionais de direitos humanos. Foi isso o que fez ao propor a leitura da lei do impeachment a partir do Pacto de São José da Costa Rica. Neste sentido o relator do ADPF revelou seu comprometimento com uma concepção de direito que, a cada dia, assume maior força: uma concepção em que o diálogo entre direito interno e internacional é inevitável.

Ademais o voto utiliza a filtragem constitucional como um mecanismo de autocontenção judicial. Nem sempre a filtragem se comporta assim. Os demais votos e a petição inicial fizeram leituras diversas da filtragem constitucional. Mas neste caso a interpretação levada a efeito pelo ministro Fachin efetivamente serviu para a autocontenção. Deveras, ao contrário do que foi afirmado em muitas críticas que emergiram antes do julgamento, a proposta do voto não foi a de construir um novo rito para o impeachment, fazendo com o que Poder Judiciário se substituísse ao legislador. O que o voto fez foi tentar reconstruir o sentido da lei já existente a partir de normas constitucionais e internacionais através de interpretação conforme e sistemática. E como foi antes referido, o Judiciário não precisa de autorização do legislador para interpretar e aplicar as leis conforme a Constituição. Este tem sido o comportamento normal do STF e, logo, nada teve de ativista, neste aspecto, a leitura proposta pelo ministro Fachin.

Finalmente, o voto do relator não prevaleceu. Isso não significa que a ideia de filtragem constitucional tenha sido afastada. Os demais votos também seguiram a linha de releitura da lei 1079/50 na perspectiva da Constituição de 1988. O que não venceu foi uma determinada compreensão sobre o processo de constitucionalização.

É preciso neste aspecto reconhecer que a filtragem constitucional revela algo que é inafastável em sociedades complexas, plurais, desiguais e fragmentadas: a existência de profundos desacordos morais em relação ao conteúdo e extensão de princípios constitucionais e direitos fundamentais. No caso, a decisão final mostrou existir desacordo em relação ao sentido de algo até mesmo básico para o direito: o que é ampla defesa e qual a sua extensão? O que dizer sobre a compreensão de dignidade humana, interesse público, moralidade ou boa administração pública?

De qualquer modo, tendo vencido este ou aquele entendimento, não se pode deixar de reconhecer que o Judiciário é, sim, um dos atores que possui legitimidade constitucional para dar solução a desacordos morais em relação ao conteúdo normativo do direito, respondendo aos casos concretos e ao mesmo tempo fomentando diálogos institucionais. No contexto do estado democrático de direito, do estado constitucional e da democracia deliberativa pode ser, como afirmam diversos pensadores, que o Judiciário não detenha mais o monopólio sobre “a palavra final” em relação à interpretação da Constituição. Mas disso não se autoriza afirmar o Judiciário não possua qualquer papel. O STF, neste caso, fez a sua parte. Pode não ter colocado um ponto- final. Mas certamente colocou seus argumentos para serem considerados nos próximos capítulos do enredo.

Paulo Ricardo Schier, doutor em Direito Constitucional, autor da obra “Filtragem Constitucional” e professor do mestrado em Direito do Centro Universitário Unibrasil

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