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O recente Código de Processo Civil de 2015, que entrou em vigor em março de 2016, contém uma série de dispositivos que conferem maior autoridade às decisões proferidas por um tribunal. Em suma, uma decisão que tradicionalmente afetava apenas as partes envolvidas pode ser reproduzida em outros casos, por causa de seus argumentos, da corte que tomou a decisão e de acordo com a via pela qual o caso chegou àquela corte.

É bastante comum a afirmação de que, diante dessa nova metodologia, o Brasil ingressa em um sistema de Common Law. A expressão procura traduzir a tradição jurídica típica das colônias britânicas, marcados especialmente pala ausência de códigos elaborados pelo Poder Legislativo. Como esses sistemas teriam, em tese, menor previsibilidade e geravam menos confiança, os magistrados passaram a decidir de acordo com o costume (por isso, o Direito Comum ou Costumeiro) e, posteriormente, a partir dos costumes dos próprios tribunais, consolidados por meio dos precedentes.

Em tempo, o Brasil é considerado, junto com outros países da América Latina, como um país que segue a tradição de Civil Law, marcada justamente pela opção de codificação do Direito, de inspiração nos Estados da Europa continental. Como se sabe, o Brasil tem uma série de Códigos, do Civil ao Penal, o que confirma a filiação a essa tradição.

O que deve ser observado, porém, é que o fenômeno por qual o Brasil tem passado não é algo isolado. Por um lado, são diversas as considerações oriundas da própria Common Law sobre o fato de que aquele sistema tem sido assoberbado por leis, o que levou Guido Calabresi, um dos mais importantes juristas dos Estados Unidos da América a afirmar, em 1982, que os norte-americanos ingressavam em uma “Era de Leis”. Pelo outro lado, o Brasil não é o primeiro país de tradição civilista que reconhece certa autoridade às decisões de seus tribunais. Em estudos comparados, já se constatou que Estados como a Alemanha, a Itália e a Argentina consideram os precedentes para a tomada de novas decisões.

Este fenômeno de aproximação entre as tradições não é desarrazoado nem injustificado. No momento em que os juristas observam que as previsões legais podem ser interpretadas, e que o Direito pode sofrer uma atribuição de sentido após sua elaboração – ou seja, que a lei admite diversas interpretações – duas conclusões são possíveis: a de que as decisões dos magistrados podem ser diferentes, porque diversas interpretações são possíveis; e a de que, por consequência, a decisão dos juízes sobre os casos importa para o próprio Direito. Prova destas conclusões é a repercussão de julgamentos recentes por parte do Supremo Tribunal Federal, como as questões da paternidade biológica e afetiva e a possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

É possível, ainda, chegar a uma terceira conclusão: se as decisões importam, mas se podem ser diferentes, deve haver algum meio para uniformizá-las e, com isso, garantir isonomia entre os cidadãos submetidos a um mesmo ordenamento jurídico. É justamente neste aspecto que a teoria dos precedentes socorre a Civil Law. Ao proporcionar maior segurança quanto à interpretação do direito legislado, os precedentes se firmam como uma instância intermediária entre a identificação da norma aplicável e a solução de um determinado caso.

O Brasil não abandonará os Códigos. Basta recordar que, para além do recente Código de Processo Civil de 2015, encontram-se em discussão no Poder Legislativo um projeto de Código Comercial e outro de Processo Penal. O Brasil também não parece propenso a abandonar as leis e outros projetos que dependem do Legislativo, inclusive as emendas constitucionais. Portanto, a adoção da teoria dos precedentes não se mostra capaz de, por si só, alterar uma tradição jurídica. No entanto, os precedentes podem colaborar para mais previsibilidade e para o desenvolvimento da compreensão do Direito. É certo que para o sucesso dessa proposta todos os profissionais envolvidos nas discussões judiciais devem buscar maior coerência, integridade, estabilidade e uniformidade nas decisões, mas o simples fato de o tema estar em discussão já demonstra que os precedentes passam a fazer parte da realidade da Civil Law brasileira.

William Pugliese: professor substituto de Direito Constitucional da UFPR. Coordenador da Pós-graduação em Direito Processual Civil da ABDConst; advogado; autor do livro Precedentes e a Civil Law Brasileira
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