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Aos 30 de junho de 2016, foi sancionada a Lei 13.303/2016 , que “dispõe sobre o estatuto da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. A lei pretende disciplinar a unanimidade das empresas estatais brasileiras, sem qualquer exceção. Pouco importa se desenvolvam sua atividade em concorrência ou monopólio, sob o regime de direito privado ou de direito público: todas estão abrangidas.

O diploma é de suma importância para o Estado brasileiro, eis que as estatais ocupam parcela bastante significativa da nossa economia – tanto em termos qualitativos como quantitativos. Conforme consta da página do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, só as federais são mais de uma centena. Há empresas vinculadas à União com os mais variados objetos, como, por exemplo: financiamento industrial; energia elétrica; bancos; cartões; viagens e turismo; tecnologia digital; abastecimento; trens urbanos; petroquímica; serviços hospitalares; infraestrutura aeroportuária; planejamento e logística; gás; asfalto; processamento de dados; hospitais; telecomunicações; petróleo; energia nuclear; ferrovias; material bélico; tecnologias de defesa, etc. etc.

Pense-se agora nas empresas dos Estados-Membros, do Distrito Federal e dos Municípios. Tantas são, que até a página da Wikipédia referente às estatais brasileiras está incompleta. Por exemplo, só para o Estado do Paraná, várias vêm à memória: COHAPAR, CELEPAR, Fomento Paraná, Ambiental Florestas, CODAPAR, CEASA, FERROESTE, BADEP, TECPAR, APPA, EMATER e MINEROPAR. O leque é amplíssimo.

Logo, já se pode ter uma ideia da relevância social, econômica e política detida pelas estatais brasileiras. Inclusive, se pensarmos nos recentes escândalos oriundos da corrupção, o papel desempenhado por tais empresas muda de figura – e assume ares bem mais sombrios. O que revela a importância de um diploma normativo que foi apelidado de “lei de responsabilidade das estatais”. Basta pensar nas regras pertinentes à nomeação de sua diretoria – que proíbe aqueles que não detenham reconhecida competência técnica, bem como os que venham de partidos políticos, organizações sindicais (art. 17). Logo, está na hora de nos debruçarmos no estudo da nova legislação das estatais brasileiras.

Escrito na primeira hora, este breve artigo pretende colaborar com a compreensão dessa lei, sobretudo quanto a dois de seus aspectos mais polêmicos (que não são poucos). Os assuntos foram escolhidos porque dizem respeito a temas estruturais da Lei 13.303/2016.

O primeiro aspecto polêmico diz respeito à competência da União para criar norma jurídica nacional, que discipline empresas estaduais, distritais e municipais. Quanto às estatais federais, dúvida não pode haver: é a própria legislação federal quem autoriza sua criação. Porém, como ficam as demais pessoas políticas expressamente previstas no art. 1º da Lei 13.303/2016? A resposta exige o exame atento das competências legislativas definidas na Constituição brasileira. Na ausência de previsão literal, não se presume a competência: ela simplesmente não existe. Em outras palavras, para que uma pessoa política emane normas que vinculem as outras, o silêncio é eloquente: o pacto federativo admite apenas a excepcional competência multifederativa geral se estiver expressa no texto. Mas o que prevê a Lei Fundamental brasileira?

O art. 22 da Constituição, que estabelece a competência privativa da União, em momento algum menciona as estatais – e nem se diga que a Lei 13.303/2016 seria de “direito comercial” (art. 22, inc. I) ou de “normas gerais de licitação e contratação” (art. 22, inc. XXVII). Muito embora existam alguns dispositivos que versem sobre esses assuntos (em especial licitação e contratos, nos arts. 28 a 84 – alguns dos quais a configurar “normas gerais”), não é disso de que trata a Lei 13.303. De igual modo, tampouco o art. 24 – que positiva a competência legislativa concorrente da União, Estados e Distrito Federal (excluindo a dos Municípios) – autorizaria a edição de lei nacional a propósito de empresas estatais.

Note-se que o problema não é resolvido por meio de busca mais minuciosa no texto constitucional – em que a palavra “empresa” aparece 69 (sessenta e nove – ufa!) vezes. Em nenhuma vez se pode inferir que exista a competência da União para editar lei que discipline como devem ser criadas e funcionar as empresas oriundas de outras pessoas políticas. Mesmo porque tais pessoas eram criadas – e hoje sua criação é autorizada – por lei, nos termos da Constituição da República e de cada um das Constituições estaduais (além das normas distrital e municipais). Há várias leis estaduais, distritais e municipais que geraram as respectivas estatais (e não uma grande lei multifederativa geral), cada uma delas com suas peculiaridades.

Quando muito, poder-se-ia cogitar do § 1º do art. 173 da Constituição, ao falar que “A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (...)”. Porém, parece-me que a redação deste dispositivo, que foi dada pela Emenda Constitucional 19/1998, não permite inferir que, ao escrever “a lei”, o constituinte positivou “a lei editada pela União com incidência obrigatória para todas as demais pessoas políticas”. O art. 173 não trata da competência legislativa excepcional (a União a legislar para as demais pessoas federativas), mas sim do conteúdo da(s) futura(s) lei(s) a ser(em) positivada(s).

Ao que tudo indica, será forte a polêmica quanto à incidência multifederativa geral da Lei 13.303/2016. Em termos mais específicos: ela teria o condão de revogar todos os artigos das leis estaduais, distritais e municipais que porventura com ela conflitem? Em termos normativos, isso já aconteceu? Como ficam as leis que legitimaram a criação dessas pessoas jurídicas? Por outro lado, a sua positivação inibiria a competência dos Estados-Membros, do Distrito Federal e dos Municípios – cujas futuras leis a respeito de empresas estatais, a partir de agora, haveriam de curvar-se à lei federal? Isso sem se falar no que é de pronto mais importante: as empresas estatais vinculadas a todas as pessoas políticas precisariam se adaptar administrativamente e dar cumprimento irrestrito e imediato à Lei 13.303/2016? Ela institui imediatamente deveres aos diretores das empresas estaduais, distritais e municipais? Os debates estão só começando, mas precisam conviver com outros assuntos controversos.

Assim, a segunda polêmica tratada neste artigo diz respeito ao Direito Intertemporal. A Lei 13.303/2016 é bastante confusa a esse respeito, trazendo dispositivos espalhados que pretendem regular o(s) momento(s) da incidência normativa. Por exemplo, o art. 1º, § 4º, o art. 91 e o art. 97. Vamos a cada um deles, começando pelo que parece mais fácil.

O art. 97 é uma cláusula geral, padrão de fechamento na maioria das leis. Ele preceitua que a Lei 13.303/2016 “entra em vigor na data de sua publicação”. Logo, o diploma tem incidência imediata, não se submetendo – exceção feita a eventuais previsões expressas – à vacatio legis. O legislador reputou que a norma não precisaria de qualquer período de adaptação para ser aplicada e determinou que todos devem obedecê-la irrestritamente, a partir do dia 30 de junho do corrente. Porém, aqui o fácil começa a ficar difícil.

Isso porque o art. 91 estabelece que “A empresa pública e a sociedade de economia mista constituídas anteriormente à vigência desta Lei deverão, no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, promover as adaptações necessárias à adequação ao disposto nesta Lei”. Ao que se infere, o legislador pretendeu positivar o dever de condutas proativas em todas as estatais brasileiras (sobretudo as companhias abertas), bem como os consórcios nos quais elas participem como operadoras (art. 1º, § 5º), para que adotem medidas em todos os seus níveis de funcionamento: composição das diretorias e conselhos; regras de governança; função social; licitações, contratos e sanções; fiscalização pela sociedade etc.

Logo, a Lei incide de imediato mas não incide de imediato. Pode-se imaginar que os atos e fatos a ser praticados depois do dia 30 de junho de 2016 deverão obediência irrestrita à Lei 13.303/2016 (por exemplo, a nomeação de diretores deve cumprir o art. 17). O mesmo se diga quanto às leis que autorizem a criação de estatais. Todavia, as estatais que já existem precisam se adaptar: neste caso, a Lei 13.303/2016 incide aos poucos, de maneira diferenciada: as normas e práticas que a contrariem são tidas como revogadas; as que precisem de conformação – seja porque ainda não existem, seja porque não são explícitas o suficiente - demandam esforços para cumprir o prazo de 24 meses.

Contudo, ao menos três perguntas ficam em aberto: a primeira delas diz respeito às licitações, que não possuem regra expressa de Direito Intertemporal. O § 3º do art. 97 excepciona apenas as licitações e contratos em curso (às quais a lei nova não se aplica). Porém, podem ser promovidas aquelas cujos editais estão prontos e aprovados, mas ainda não foram lançados? Eles haverão de ser recolhidos e refeitos? Além disso, a segunda pergunta: se as leis estaduais, distritais e municipais contrariarem a Lei 13.303/2016, o que acontece? A ordem do legislador federal obriga os legisladores estaduais, distrital e municipais? Ou será o administrador quem vai escolher quais normas aplica – se a federal ou se a que criou a respectiva estatal? Mas a pergunta mais interessante talvez seja a terceira: o que acontece no primeiro dia depois do término do 24º mês? Qual a sanção para a desobediência ao caput do art. 91? As empresas estatais não-adaptadas serão ilícitas? Ou fica tudo como dantes?

Os demais dispositivos de Direito Intertemporal não tornam a vida do aplicador mais confortável, sobretudo a dos membros das diretorias das empresas estatais. Vamos tratar apenas de um dispositivo que vem logo no início da Lei 13.303/2016.

O art. 1º, § 4º, estabelece que “A não edição dos atos de que trata o § 3o no prazo de 180 (cento e oitenta) dias a partir da publicação desta Lei submete as respectivas empresas públicas e sociedades de economia mista às regras de governança previstas no Título I desta Lei”. Como se pode notar, a sua compreensão exige o exame do § 3º do mesmo art. 1º e do “Título I” da mesma lei. Vamos tentar explicar essa barafunda legislativa...

O § 3º preceitua que os “Poderes Executivos” – imagina-se que sejam os da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios – “poderão editar atos que estabeleçam regras de governança destinadas às suas respectivas empresas públicas e sociedades de economia mista”. Logo, eles podem, não devem. Mas, caso não o façam, a consequência imediata é a incidência das “regras de governança previstas no Título I” – que, curiosamente, não contém nenhum capítulo que se refira a “regras de governança”.

A Lei vale-se desse termo em nove preceitos (art. 1º, §§ 3º, 4º e 7º; art. 6º; art. 8º, incs. III, VIII e § 3º, inc. II; art. 12, inc. II, e art. 18, inc. I), mas não diz a que veio. Não sem algum esforço, poder-se-ia cogitar que seu significado normativo estaria nos incisos do § 7º do art. 1º, que tratam desse assunto. Mas fato é que ele dispõe que: “Na participação em sociedade empresarial em que a empresa pública, a sociedade de economia mista e suas subsidiárias não detenham o controle acionário, essas deverão adotar, no dever de fiscalizar, práticas de governança e controle proporcionais à relevância, à materialidade e aos riscos do negócio do qual são partícipes” (isto é, o dever de controle das estatais sobre as sociedades das quais sejam sócias, sem poder de controle). Ademais, não é isso que a norma do § 3º do art. 1º preceitua, pois ela fala no “Título I” inteiro – e não em subparte dele. O que importa dizer que a Lei 13.303/2016 reporta-se a deveres de suma importância, mas não diz onde eles estão. Seriam “deveres implícitos”?

O que se pode imaginar como escopo normativo é o seguinte: a lei facultou aos chefes do Poder Executivo de todas as pessoas políticas (todos os 26 Estados, 5.570 Municípios e o Distrito Federal – basta ser controlador de uma empresa) a edição do regulamento de governança corporativa das estatais em 180 dias. Se esse regulamento não for editado, daí incidirá o “Título I” da Lei 13.303/2016.

Agora, as perguntas que não querem calar: a lei e respectivas regras de governança não incidiriam de qualquer forma?; o regulamento de governança poderá contrariar a lei – ou ficar aquém dela?; a edição do regulamento inibirá a incidência normativa?; o legislador escolheu quando haverá incidência do dever de governança corporativa – e, assim, o suspendeu por 180 dias? Até lá, a governança não vale? Ou é implícita? Somente com algum esforço esta confusão poderá – e deverá ser vencida.

Com o devido respeito e também com o reconhecimento da relevância da Lei 13.303/2016 para o momento em que vivemos, fato é que a técnica legislativa não foi das melhores. Em alguns momentos, parece que foi juntado um apanhado de dispositivos dispersos e se subverteu a razão de ser de Títulos, Capítulos, artigos, parágrafos e incisos – como preceituados na Lei Complementar 95/1998 (“Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis”).

Aliás, isso fica patente com o nome atribuído ao “Título II”, todo ele em letras maiúsculas na redação original: “DISPOSIÇÕES APLICÁVEIS ÀS EMPRESAS PÚBLICAS, ÀS SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA E ÀS SUAS SUBSIDIÁRIAS QUE EXPLOREM ATIVIDADE ECONÔMICA DE PRODUÇÃO OU COMERCIALIZAÇÃO DE BENS OU DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS, AINDA QUE A ATIVIDADE ECONÔMICA ESTEJA SUJEITA AO REGIME DE MONOPÓLIO DA UNIÃO OU SEJA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS”. Este título, que poderia concorrer ao Guiness World Record legislativo (maior? pior? maior e pior?), reproduz e adapta texto do próprio art. 1º da mesma Lei 13.303/2016. O que o esvazia de sentido.

A rigor e por maior que seja a simpatia que se nutra por tal diploma normativo, que trata de assunto de magna importância, fato é que, lamentavelmente, o legislador nem sempre se valeu da melhor técnica em alguns dos temas de maior relevância. Há dispositivos de imediata e fácil aplicação, mas a oportunidade de se editar uma lei que servisse de exemplo não foi aproveitada.

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