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Boa parte da dita “Ciência do Direito”, tal como hoje a conhecemos, foi mais firmemente estruturada em meados do século XIX e começo do século XX. Talvez o seu grande arquiteto tenha sido Hans Kelsen, que construiu um edifício teórico homogêneo, repleto de lógica, harmonia e relações estáticas de hierarquia. Um sistema que se pretendia estável. Sem dúvida alguma, essa concepção refletia a influência das demais ciências – que, desde muito antes, vinham pretendendo delinear um mundo regido por leis naturais que funcionavam em cenários de estabilidade e permanência. Havia tanta certeza nas ciências ditas duras, que algumas eram chamadas de “exatas”: forneciam resultados com elevado grau de precisão; sabia-se, com certeza, o que de seus estudos adviria. O estudo científico do Direito nelas se espelhou e tentou ser também ser certo, estável e previsível. Não é devido a um acaso, portanto, que um dos grandes trunfos dos operadores do Direito é a “segurança jurídica”: a estabilidade conferida às relações sociais, oriunda das normas jurídicas. Precisão; certeza; relações de causalidade; previsibilidade e estabilidade.

Ocorre que hoje existe uma certeza a mais nas ciências exatas: a de que as certezas acabaram. Por um lado e como demonstrou Karl Popper , o que os cientistas fazem é testar as suas teorias e tentar provar que elas são falsas. Livrando-se de visões errôneas, aproximam-se da verdade. Não há determinismo nem eternidade. A ciência não pode confiar na indução, mas precisa construir hipóteses refutáveis (se algo não for refutável, o conhecimento deixa de ser científico). Por outro, muito mais interessante é aquilo que o Prêmio Nobel Ilya Prigogine proclamou: “fim das certezas”.

Quais são as inquietações de Prigogine? A que elas conduzem? Nada mais nada menos do que à reformulação das leis fundamentais da natureza. “Assistimos ao surgimento de uma ciência que não mais se limita a situações simplificadas, idealizadas, mas nos põe diante da complexidade do mundo real, uma ciência que permite que se viva a criatividade humana como a expressão singular de um traço fundamental comum a todos os níveis da natureza.” – é consignado logo na introdução de seu livro de 1996.

Parece-me que estes desafios precisam repercutir na Ciência do Direito, sob pena de vivermos num mundo que não mais existe. Isto é, um mundo em que as relações jurídicas não experimentam as vicissitudes do tempo, mas que se blindam em cápsulas de certezas intocáveis. Talvez daí advenha a dificuldade que juristas mais tradicionalistas – e também tribunais – tenham ao se deparar com os desafios dinâmicos do Direito Ambiental: disciplina que possuiu uma ética própria (a ética da natureza), tem fontes normativas internacionais e se preocupa com direitos subjetivos de pessoas que ainda não nasceram (as futuras gerações), transcendendo as clássicas fronteiras do espaço-tempo.

O mesmo se diga dos contratos de longo prazo, públicos ou privados, que se vêem submetidos a lógicas oitocentistas de estabilidade e imutabilidade – como se o tempo passado fosse igual ao tempo futuro (ou como se houvesse algo que pudesse ser chamado de “imprevisível” para contratos de 30 anos de duração: quanta arrogância em se supor que se pode prever tal futuro!). Se pensarmos bem, chegaremos à conclusão de que a instabilidade e incompletude dos contratos de longo prazo são muito mais importantes de serem estudadas do que a sua suposta estabilidade. Tal como Prigogine escreveu em vista da física tradicional, ela “unia conhecimento completo e certeza: desde que fossem dadas condições iniciais apropriadas, elas garantiam a previsibilidade do futuro e a possibilidade de retrodizer o passado. Desde que a instabilidade é incorporada, a significação das leis da natureza ganha um novo sentido. Doravante, elas exprimem possibilidades.” Agora, leiam essa mesma sentença pensando no Direito: está na hora de deixarmos de lado a arqueologia jurídica como critério de aplicação das normas e tentarmos construir uma teoria que permita enfrentar os desafios do futuro, que não param de chegar.

Alguns vídeos

Quem quiser ouvir um belíssimo depoimento sobre a vida e obra de Hans Kelsen, sugiro este vídeo, com a aula de Mario Losano:

Já as teorias de Ilya Prigogine são expostas por ele mesmo em vários vídeos, com especial destaque para este:

*Egon Bockmann Moreira: Advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve às segundas-feiras, quinzenalmente, para o Justiça & Direito.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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