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I.Introdução

Durante o julgamento da Ação Penal nº 470, cognominada Mensalão [1], um dos temas discutidos no Supremo Tribunal com repercussão midiática foi a teoria do domínio do fato. O processo foi o mais longo na história da Corte, em 53 sessões plenárias para decidir sobre as acusações contra 38 réus. Quando a causa começou a ser julgada, a ação já contava com 234 volumes e 495 apensos e o acórdão tem 8.405 páginas.

Dos diversos temas debatidos pelas partes, dois deles tiveram preponderância sobre todos os demais: a) a alegação da defesa de que não havia corrupção e sim “caixa 2”, como infração de menor potencial ofensivo; b) a tese do Ministério Público sobre a existência de uma quadrilha e que o principal agente, responsável pelo comando e orientação dos membros da associação criminosa, seria o réu José Dirceu.

Alimentava-se com tal imputação o debate judicial e acadêmico sobre a teoria do domínio do fato, de intensa repercussão midiática pelos artigos, entrevistas e opiniões de penalistas. No entanto, o tema já havia sido tratado na doutrina nacional há muito tempo pela excelente monografia de Nilo Batista, Concurso de agentes, com a primeira edição publicada em 1978, valendo como referência obrigatória para os estudiosos e profissionais do Direito Penal.

II. Indicação histórica

O primeiro jurista a empregar em Direito Penal a expressão “domínio do fato” foi HEGLER, na obra de 1915 sobre Os elementos do delito, introduzindo-a em várias partes de sua monografia como “domínio do fato” ou como “domínio sobre o fato” (ROXIN, Autoría y dominio del hecho, § 11, p. 81).

III. Noção geral

“A ideia básica da teoria do domínio do fato pode ser assim enunciada: o autor domina a realização do fato típico, controlando a continuidade ou a paralisação da ação típica; o partícipe não domina a realização do fato típico, não tem controle sobre a continuidade ou paralisação da ação típica” (CIRINO DOS SANTOS, Direito penal, p. 360). (Itálicos do original).

Na escorreita doutrina de ALAOR LEITE, “a teoria do domínio do fato parte de um sistema diferenciador e de um conceito restritivo de autor. Ela parte de um sistema diferenciador, pois crê ser necessária a distinção, já no plano do tipo, de níveis de intervenção no delito, ou seja, entre autor (imediato e mediato, além da coautoria) e partícipe (instigador e cúmplice). Ela parte de um conceito restritivo, pois entende que apenas o autor do delito é que viola a norma de conduta inscrita na parte especial do Código, e a punição da participação seria produto de uma norma extensiva da punibilidade. O conceito restritivo de autor é contraposto ao conceito extensivo, que entende que autores e partícipes violam a norma de conduta contida na parte especial, e que a menor punição da participação é uma decisão do legislador por restringir a punição do partícipe. O sistema diferenciador é contraposto ao sistema unitário, que sequer distingue entre autor e partícipe, ou distingue conceitualmente mas prevê os mesmos marcos penais para todas as contribuições” (“Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros. Os conceitos de autor e partícipe na AP 470 do Supremo Tribunal Federal”, artigo publicado em Autoria como domínio do fato, p. 134). (Itálicos do original)

IV.Relevo dogmático da teoria

Segundo o correto entendimento de SOUZA-JAPIASSÚ, “a teoria do domínio do fato corrige o defeito apresentado pela teoria objetivo-formal. Efetivamente, deve ser considerado como autor não só o concorrente que realiza pessoalmente as elementares do tipo, mas, igualmente, aquele que detém o poder sobre sua realização. Por exceção, o concorrente que não realiza o verbo típico, tampouco controla o desenrolar do processo delitivo, será considerado partícipe do delito” (Direito Penal, p. 292). Daí porque “a doutrina buscou um critério objetivo-material de identificação do autor. Importa aqui mais do que simplesmente a realização do núcleo do tipo, mas sim o efetivo (material) domínio da realização do delito” (BUSATO, Direito Penal, 2ª ed., p. 707).

V.Formas de manifestação da teoria

Os exímios penalistas GRECO-LEITE, no artigo “O que é e o que não é a teoria do domínio do fato. Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal”, publicado em Autoria como domínio do fato, p. 25-31, destacam as três manifestações concretas da ideia do domínio do fato, a saber:

A.O domínio da ação

O domínio da ação é caracterizado pela conduta do autor imediato. “Trata-se da hipótese do § 25 I StGB, descrita pelas palavras ‘comete o fato por si mesmo’. Quem aperta o gatilho tem o domínio da ação e nunca poderá ser mero partícipe. (...) Aquele que domina a ação permanece autor ainda que aja a pedido ou mando de outrem, ou mesmo em erro de proibição inevitável determinado por um terceiro (§ 17 do StGB; art. 21 do nosso CP); será um autor exculpado, mas ainda assim autor do fato típico, ainda que não necessariamente o único” (GRECO-LEITE, ob. cit., p. 25-26).

B.O domínio da vontade

O domínio da vontade revela a figura do autor mediato que serve como instrumento de outrem para a prática do delito e é descrito também pelo § 25 I do Código Penal alemão, por meio da expressão “comete o fato por meio de outrem”. Essa situação envolve três aspectos: a) a coação exercida sobre o homem da frente. A responsabilidade penal é do homem de trás, assim como ocorre com o art. 22 do CP; b) a autoria mediata em situação de erro. Vale, como exemplo, a hipótese do contrarregra de teatro que, pretendendo a morte do ator A , fornece ao ator B , que irá fazer a cena fictícia de matar A , a arma municiada com projétil real e não com pólvora seca. B é o autor mediato não culpável em face do erro de tipo inevitável. Para ROXIN, o induzimento em erro do executor da ação é excludente do dolo ou da imprudência inconsciente (Autoría y dominio del hecho, § 22, p. 195); c) o domínio da vontade do executor por meio de um aparato organizado de poder. A propósito dessa classificação, é oportuna a lição de ROXIN: “(...) quien es empleado en una maquinaria organizativa en cualquier lugar, de un manera tal que puede impartir órdenes a subordinados, es autor mediato en virtud del dominio de la voluntad que le corresponde si utiliza sus competencias para que se cometan acciones punibles. Que lo haga por propia iniciativa o en interés de instancias superiores y a órdenes suyas es irrelevante, pues para su autoría lo único decisivo es la circunstancia de que puede dirigir la parte de la organización que le está subordinada sin tener que dejar a criterio de otros la realización del delito. Con buen criterio puntualiza JÄGER que precisamente en estos casos queda claro ‘que una acción consistente simplemente en firmar un documento o en llamar por teléfono puede constituir asesinato (y ello también, según el Derecho alemán vigente con carácter absoluto y sin limitaciones)’” (Autoría y dominio del hecho, § 24, p. 275). (Itálicos meus). Em nota de rodapé, nº 13, ROXIN observa: “Por esto tampoco puede excluir la autoría, por ejemplo, en el caso Eichmann, la indicación del defensor de que su defendido fue autónomo sólo en el trabajo rutinario y de que, como informante, simplemente firmó ‘por orden’” (Ídem, ibídem).

C. O domínio funcional do fato

Essa modalidade de poder ocorre na coautoria em uma atividade típica da distribuição de tarefas, em fato praticado por mais de duas pessoas culpáveis. Vale o exemplo de GRECO-LEITE: “A aponta uma pistola para a vítima (grave ameaça), enquanto B lhe toma o relógio de pulso (subtração de coisa alheia móvel): aqui, seria inadequado que A respondesse apenas pelo delito de ameaça (art., 147, CP) ou de constrangimento ilegal (art. 146, CP), e B apenas pelo furto (art. 155, CP). Se duas ou mais pessoas, partindo de uma decisão conjunta de praticar o fato, contribuem para a sua realização com um ato relevante [2] de um delito, elas terão o domínio funcional do fato (funktionale Taherrschaft), que fará de cada qual coautor do fato como um todo, ocorrendo aqui, como consequência jurídica, o que se chama de imputação recíproca [3]. A e B responderão, assim, ambos pelo delito de roubo (art. 157 do C).” (ob. cit. em Autoria como domínio do fato, p. 30-31). (Destaques em itálico do original).

VI.A teoria do domínio do fato e o art. 29 do Código Penal

As disposições do art. 29, caput e parágrafos do Código Penal [4] não se harmonizam com a teoria do domínio do fato, embora a equivocada opinião em contrário, defendida por alguns intérpretes de nosso diploma. Em primeiro lugar, porque a faculdade judicial para reduzir a pena “se a participação for de menor importância(§ 1º) não satisfaz a exigência dogmática de que a participação tenha uma tipicidade autônoma. Essa é a orientação do modelo alemão, ao definir a) autor como quem comete o fato punível por si mesmo ou por intermédio de outrem (§ 25, nº 1); b) coautor: é também punido como autor quem, juntamente com outrem e de comum acordo, pratica o fato punível (§ 25, nº 2); c) partícipe (instigador): “Instigación (inducción a delinquir) Igual que el autor será castigado el instigador. Instigador es quien haya determinado dolosamente a otro para la comisión de un hecho antijurídico (§ 26)”; d) cúmplice: “Como cómplice se castigará a quien haya prestado dolosamente ayuda a otro para la comisión un hecho doloso antijurídico (§ 27, nº 1); La pena para el cómplice se sujeta a la sanción penal para el autor. La pena debe reduzirse conforme al § 49, inciso 1” (§ 27, nº 2).

Em outras palavras: enquanto o art. 29 do Código Penal adota um sistema unitário (“Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas...”) a teoria (rectius: a ideia) do domínio do fato está ancorada em um sistema diferenciador. A propósito: “Ao contrário da concepção derivada da leitura tradicional do código, a teoria do domínio do fato diferencia autores e partícipes – sistema diferenciador. Mais: essa diferenciação é entendida como um problema de tipo, e não apenas de determinação de uma moldura penal mais ou menos severa” (GRECO-ASSIS, Autoria como domínio do fato. Estudos introdutórios..., p. 87). (Itálicos do original).

VII.Casos de inaplicabilidade da teoria do domínio do fato

A adoção da ideia do domínio do fato não é universal e, portanto, não se aplica a todas as formas do concurso de pessoas. Em determinadas infrações penais, a autoria não é ajustável pela ideia do domínio do fato, e sim, com base em outros critérios. Seguem-se duas exceções: a) crimes de violação de dever [5]; b) crimes de mão própria.

Exemplos dos primeiros são os delitos praticados pelo funcionário contra a administração pública, a exemplo da corrupção passiva, concussão etc. Se um terceiro induz o servidor a apropriar-se de dinheiro que tem sob sua guarda para proveito de ambos, o extraneus possui o domínio do fato, mas não poderá ser o autor do mencionado ilícito. “Considerá-lo autor seria estranho, porque o que justifica a pena elevada do delito funcional – pense-se no peculato (art. 312, CP), com a pena de 2 a 12 anos, e na apropriação indébita (art. 168, CP), com pena de 1 a 4 anos – é a violação de um dever que se dirige apenas ao detentor da função, e não a um terceiro”. O mesmo se pode dizer quanto aos delitos omissivos (como espécie do gênero dos crimes de violação de dever), porque “o domínio do fato pressupõe, necessariamente, um controle ativo do curso causal e não pode ser atingido por um mero não-fazer” (ROXIN, AT II, § 31, n. 133 e s., apud GRECO-LEITE, “O que é e o que não é...”, cit., em Autoria como domínio do fato, p. 32-33). No mesmo sentido é a lição de BUSATO: “O mesmo se pode dizer dos casos dos crimes especiais ou próprios – aqueles que exigem, do sujeito ativo, alguma qualidade ou condição especial –, onde, existindo uma pluralidade de agentes, o autor sempre será o intraneus, ou seja, aquele que está incluído no círculo de autores delimitados normativamente pelo tipo. Desse modo, somente as pessoas que reúnam a qualidade específica mencionada pelo tipo estão em condições de serem identificadas como autores” (Direito Penal, 2. Ed., p. 710). (Itálicos meus). Se, porém, duas pessoas que, por força de lei ou do contrato tenham o dever de agir para evitar o resultado danoso e se omitem, o caso não é de coautoria, e sim, de autorias autônomas. Admita-se a hipótese de dois carcereiros que propositadamente queiram a morte do diretor do presídio e, para tanto, não o socorrem quando o mesmo, ao entrar em uma das celas, é agredido e morto por um dos presos.

Quanto aos delitos de mão própria (CP, arts. 342, 355 etc.), a doutrina é uniforme no sentido da não aplicação dos arts. 29 e 30 do Código Penal, embora admita-se a participação. Cf. MAURACH, “los delitos de propia mano no son delitos de resultado, sino simples delitos de actividades, en los que el desvalor de la acción ocupa un primer plano: el resultado es totalmente indiferente para el derecho, basándose el desvalor en la circunstancia de que la ejecución de la acción está prohibida precisamente al autor. Los extraños, en los delitos de propia mano, pueden intervenir como partícipes, pero no como autores, esto es: ni como coautores ni como autores mediatos” (Derecho Penal, § 21, II A, vol. I, p. 287). Um exemplo acabado é o ilícito previsto pelo art. 187 do CPM (deserção), justificando a máxima: o desertor somente foge pelas próprias pernas.

[1] Segundo depoimento do Deputado Federal Roberto Jefferson, em entrevista de repercussão nacional, parlamentares que compunham a chamada “base aliada” do Governo Federal, recebiam, periodicamente, recursos do Partido dos Trabalhadores para a votação favorável a projetos de interesse do Poder Executivo, caracterizando o que passou a ser designado como “mensalão”.

[2] Nota de rodapé nº 57: “Segundo ROXIN, Täterschaft, p. 275 e ss., na fase de execução (e não na fase preparatória); em sentido contrário, à posição dominante, cf. por todos Rengier, Strafrecht AT, 3. ed., München, 2011, § 44, n. 40 e ss.; Joecks, Münchner Kommentar, § 25, nm53 e ss., p. 1.157 e ss.” (Ob. cit. p. 30-31).

[3] Nota de rodapé nº 58: “Roxin, Täerschaft, p. 27 e ss.; AT II, § 25 n.188 e ss. (Ob. cit. p. 31).

[4] “Art. 29. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. § 1º Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço. § 2º Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.”

[5] ROXIN, Claus: “Los delitos de infracción de deber”, Autoría y dominio del hecho en el Derecho Penal, 7ª ed., trad. Joaquín Cuello Contreras y José Luis S.G de Murillo, Madrid: Marcial Pons, 2000 § 34, p. 385 e s.

Referência Bibliográficas:

BIBLIOGRAFIA (Por ordem de indicação dos autores)

BATISTA, Nilo. Concurso de agentes, Rio de Janeiro: Editora Líber Juris, 1978.

ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2000

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008

GRECO, Luís - LEITE, Alaor. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014

SOUZA, Artur de Brito Gueiros - JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012

BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013. v. 1

GRECO, Luís- ASSIS, Augusto, “O que significa a teoria do domínio do fato para a criminalidade de empresa”, artigo em GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano e ASSIS, Augusto, Autoria como domínio do fato- Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro, São Paulo: Marcial Pons, 2014

MAURACH, Reinhart. Tratado de Derecho Penal. Trad. e notas Juan Cordoba Roda. Barcelona: Ediciones Ariel, 1962. t. I e II

*René Ariel Dotti: Advogado; Professor Titular Direito Penal; Vice-Presidente Honorário da AIDP; Comenda do Mérito Judiciário do Paraná; Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados (2007); Corredator do projeto da nova Parte Geral do CP e da Lei de Execução Penal (Leis 7.209 7.210/84; Membro de comissões de Ref. do Sist. Penal criadas Ministério da Justiça (1979 a 2000); Diploma da OAB, Câmara dos Deputados e Comissão da Verdade (1964-1985) Secretário da Secretaria de Cultura do Paraná (1987-1991). Escreve quizenalmente para o Justiça & Direito.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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