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1.O precedente de repercussão geral

Por maioria de votos (7 x 3), o Supremo Tribunal Federal decidiu, nos autos do Recurso Extraordinário 580252, em sessão plenária da quinta-feira (16.2.17), que o Estado deve pagar indenização em dinheiro em favor do presidiário que sofreu desumano encarceramento.

A questão é oriunda de um presídio de Corumbá (MS), no qual o condenado cumpriu 20 anos em condições degradantes como – de resto ocorre na generalidade dos estabelecimentos do país no cumprimento da pena de reclusão. Os três votos vencidos também admitiram a ocorrência de tratamento cruel e afrontoso à dignidade humana, a qual é um dos fundamentos da República. Mas, conforme entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso, a compensação exigida do poder público seria a diminuição de parte da pena, na proporção de um a três dias de desconto a cada sete dias de encarceramento abusivo. Prevaleceu, no entanto, o ressarcimento em dinheiro a ser estabelecido nos casos concretos segundo critério adotado no procedimento de execução. Assim também votou a presidente Ministra Cármen Lúcia.

A decisão foi proferida com a força vinculante de repercussão geral. Vale, portanto, para todas as unidades federativas nas quais seja demonstrada a violação do preceito constitucional que declara: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (art. 5º, 49º).

2.O Direito anterior

Esse dever da Administração Pública surgiu pela primeira vez nas cartas políticas brasileiras com o diploma de 24 de janeiro de 1967 (promulgado durante o regime militar), nos seguintes termos: “impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário” (art. 150, § 14). A mesma redação foi observada pelo art. 153, § 14 da Constituição de 17 de outubro de 1969.

3.O terror e as misérias das cadeias públicas

Exaustivamente as reportagens de televisão estão mostrando imagens degradantes de seres humanos “convivendo” em cadeias públicas superlotadas e sem condições mínimas de higiene e salubridade, ao contrário das incisivas regras da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984).

Em julho de 2011, a seção paranaense de Ordem dos Advogados do Brasil promoveu o Seminário Nacional de segurança Pública e Execução Penal, sob a coordenação da missionária advogada Lucia Maria Beloni Corrêa Dias. No aludido evento, circulou texto de minha autoria que tratou da utilização das cadeias policiais para recolher presos provisórios. É oportuna a reprodução de algumas passagens daquela contribuição, que inicia com a denúncia de Gérard Bauër (1888-1967), escritor francês e editor do jornal Le Figaro: “há uma coisa ainda pior do que a infâmia das cadeias; é não mais lhes sentir o peso”.

Esse libelo constitui, lamentavelmente, um lugar comum que, pela sua recorrência, não desperta mais qualquer reação da sociedade, com exceção de alguns movimentos religiosos e de algumas pessoas que fazem de seu ofício a luta permanente em favor da dignidade humana e da missão de confortar as vítimas de um sistema carcerário injusto e opressivo.

A Constituição do Império brasileiro (25.03.1824) continha a seguinte proclamação otimista: “As cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes”. Esta foi a proclamação da Carta Política de 25 de março de 1824 (art. 179, §21).

Do Império que estava surgindo após a colonização portuguesa (1500-1822) e até a República Federativa, constituída em Estado Democrático de Direito e que tem, em seu primeiro artigo e como um de seus fundamentos, “a dignidade da pessoa humana”, o que mudou? Entre o texto da Carta Política outorgada por Dom Pedro I (1824), que declarou abolidos “os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis” e os dispositivos da Constituição Cidadã (1988), ao afirmar que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” e que “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”, qual foi a mudança?

Nenhuma. Nem mesmo o conteúdo do discurso religioso e da pregação dos apóstolos dos Direitos Humanos. Salvo quanto às embalagens que cobrem as mesmas e antigas promessas. A propósito, o art. 300 do Código de Processo Penal, com a redação que lhe deu a novíssima Lei nº 12.403/2011, adverte: “as pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas, nos termos da lei de execução penal.

É muito importante denunciar que o grave problema das cadeias públicas – de Curitiba e de inúmeras cidades do país – constituem modelos de sacrifício moral e físico dos presos e transformou as proclamações otimistas da Constituição e das leis em estátuas de areia.

Há problemas que, em sua gravidade humana e social, transcendem os limites previstos na rotina dos acontecimentos. Fatos naturais, como o terremoto ou o dilúvio, assumem proporções apocalípticas que levam populações ao desespero e dominam os espaços da mídia internacional. Há muitos eventos humanos que também revelam imensa carga de sofrimento e de dor, como a guerra e as revoluções armadas. A natureza e o homem não raramente se acumpliciam para a produção de espetáculos de terror, fazendo com que a vida imite a arte da tragédia. O espectador, o leitor e o ouvinte alternam os objetos de visão e de escuta e compõem um imaginário e sussurrante coro de testemunhas impotentes. São milhões de pessoas que ficam à frente da televisão, ao lado do rádio ou passam os olhos pelos jornais e revistas para, fechado o pano desse teatro do absurdo, retornar ao seu mundo doméstico, à rotina de seus cotidianos, ao centro do carrossel por onde passam as emoções dos dias e das noites.

4.O terrível abandono de seres humanos

Mas, além dos fatos gigantes nos cenários de horror, existem acontecimentos que desvendam, com notável frequência, as sucursais do Inferno por onde desfilam seres abandonados (crianças, velhos, doentes, presidiários) que são destinatários dos dejetos da sociedade e, não raro, vítimas de um universo feito de injustiça, indiferença, preconceito e marginalização que funcionam como pontos cardeais das viagens para portos desconhecidos.

Uma reportagem publicada há alguns anos na Gazeta do Povo e com ampla repercussão, sob o título realista “Estamos fabricando monstros”, coloca em ponto alto não somente a miséria da promiscuidade vivida pelos encarcerados como também a sensibilidade e o vigor do jornalismo investigativo. A matéria, assinada por Mara Cornelsen, distribui em página inteira as imagens e os dados estatísticos que impressionam não somente o público-leitor como também as próprias autoridades policiais e seus agentes. Aliás, as primeiras palavras denunciando esses campos de concentração vêm dos delegados que lamentaram o quadro de extermínio moral e físico quando foram entrevistados: “estamos fabricando monstros, que mais tarde serão devolvidos à sociedade”. E prossegue o texto: “esta é a opinião unânime dos delegados de polícia que atuam nos distritos de Curitiba, quando se referem ao problema da superlotação carcerária. Projetados para receber, no máximo, 40 presos – nos casos das delegacias maiores – e por apenas alguns poucos dias, as delegacias distritais existentes nos bairros da capital acabaram virando mini-presídios superlotados, que abrigam até três vezes mais pessoas do que a sua capacidade normal. Sem infra-estrutura e sem segurança, as cadeias se assemelham a verdadeiras bombas, prestes a explodir a qualquer momento” (Gazeta, 29.12.2005, pág. 8).

Essas bombas, se não forem desativadas, vão estourar também no colo dos funcionários e dos vizinhos desses depósitos de seres humanos. A caótica situação como, por exemplo, a “convivência” imposta entre delinquentes perigosos e acusados primários ou simples suspeitos derruba um dos fundamentos da República que é a dignidade da pessoa humana e nega o princípio da presunção de inocência, estabelecido em nossa Carta Política: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.

“Evangélicos doam comida”; “Em cinco anos houve aumento de 30% no número de presos no Brasil”; “Cada detento só tem 0,67 m2 para viver” e outros subtítulos da reportagem são ilustrados por fotografias que invadem as grades e desnudam a miséria dos encarcerados: “aqui vivemos num verdadeiro inferno”, diz um deles.

As cadeias têm sido servidões de passagem para o terror. Um mural infinito onde se desenham, à imagem das antigas inscrições, o sofrimento e o desespero. Assim como nos recorda a palavra imortal de um ex-presidiário: “para lá do portão ficava o mundo luminoso da liberdade, que do lado de cá se imaginava como uma fantasmagoria, uma miragem. Para nós, o nosso mundo não tinha nenhuma analogia com aquele; compunha-se de leis, de usos, de hábitos especiais, de uma casa morta-viva, de uma vida a parte e de homens a parte” (Fiódor Dostoievski, 1821-1881, “Recordações da casa dos mortos”).

5.Uma grave consequência da omissão estatal

Não existe resultado sem uma causa que o produz. As rebeliões carcerárias que se manifestaram tragicamente no mês de janeiro deste ano nos presídios de Manaus e Roraima, com a literal destruição física de 89 encarcerados revelam o triunfo da violência praticada pelas organizações criminosas. O sensível e talentoso pesquisador Paulo Sérgio Pinheiro, diplomata e especialista na defesa de Direitos Humanos, afirmou que as chacinas “evidenciam o conluio do Estado brasileiro com as organizações criminosas”. E arremata: “o que acontece nas prisões é só a ponta do iceberg do tráfico de drogas, da lavagem de dinheiro e da impunidade generalizada em relação às organizações criminosas” (em: http://www.dw.com/pt-br/chacinas-evidenciam-conluio-do-estado-com-fac%C3%A7%C3%B5es/a-37050516, acesso em 16.2.17.

Além dos genocídios carcerários, o nosso país está assistindo a audácia delituosa em grande escala, na queima de ônibus com os evidentes prejuízos humanos e sociais. Será preciso mais algum tipo de horror para que o Estado “descubra” que está fabricando monstros com os erros monumentais das prisões à imagem e semelhança de verdadeiras sucursais do Inferno?

A revolucionária decisão do Supremo Tribunal Federal pode assinalar um novo tempo para o resgate da dignidade da pessoa humana que sofre a provação bíblica da perda da liberdade com detalhes grotescos que desequilibram a balança da justiça humana, fazendo com que o castigo seja muito maior que o pecado.

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