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 | Giuliano Gomes/Gazeta do Povo
| Foto: Giuliano Gomes/Gazeta do Povo
Ficha técnica
  • Naturalidade: East Chicago, Indiana, EUA
  • Currículo: graduado em direito pela Universidade de Yale; professor da Universidade de Columbia, cofundador da e diretor do Centro de Estudos de Direito e Cultura da mesma instituição; professor visitante da Universidade de Stanford;
  • Intelectuais que o inspiram: Bruce Ackerman e Paulo Freire
  • Nas horas vagas: gosta de tocar piano; quando está no Brasil, gosta de ir a rodas de samba

A vivência pessoal e os estudos acadêmicos se mesclam no discurso do professor Kendall Thomas quando fala sobre direitos sociais. O acadêmico da Faculdade de Direito, da Universidade de Columbia foi criado na época do movimento dos direitos civis e se define como um “bebê das ações afirmativas”. Thomas pesquisa direito constitucional comparado e direitos humanos, e também trata de questões como sexualidade e igualdade racial. O acadêmico norte-americano está no Brasil durante o mês de junho para ministrar o curso “Direito, Democracia e Cultura: os novos horizontes da jurisdição constitucional no Brasil e nos Estados Unidos”, promovido pela PUC-PR, em parceria com a UFPR. Ele concedeu uma entrevista ao Justiça & Direito e comentou os recentes fatos que evidenciaram o preconceito racial nos Estados Unidos. Thomas também falou sobre ações afirmativas e comparou o sistema judicial do EUA com o do Brasil.

Nos Estados Unidos, as pessoas têm grande orgulho e citam muito a Constituição. Que diferença isso faz na vida prática?

É importante dizer que quando falamos sobre Constituição, estamos falando sobre várias constituições. Há a constituição dos advogados, juízes e outras pessoas envolvidas com o mundo jurídico, que fala sobre o poder do governo e sobre direitos individuais. Também há o que os acadêmicos chamam de constituição simbólica. No meu ponto de vista, quando os americanos falam sobre a Constituição, eles têm em mente a Constituição simbólica, que é muito importante porque é parte da identidade americana, não somente política, mas cultural. Somos uma nação multicultural, com muita diversidade. A identidade americana não está em compartilhar sangue, mas em compartilhar crenças, ideologias e aspirações. Na maioria das escolas públicas, as pessoas são ensinadas desde cedo sobre a Constituição. Eles estudam, leem ou são ensinados sobre importantes decisões do Congresso, muito da história política dos EUA, é história da Constituição, da fundação do país. Toda criança, quando é ensinada na escola sobre história, é ensinada sobre Constituição. A educação da nossa típica criança americana inclui educação cívica, e o estudo da Constituição é uma parte muito importante disso.

Os EUA tiveram grandes avanços nos direitos civis durante o século 20, mas casos como o de Ferguson mostram que ainda há muitos problemas relacionados à questão racial no país...

Para mim, Ferguson e o caso de Garner [quando um pai de família negro, que estava desarmado, foi morto pela polícia], em Nova York , onde eu moro, foram um chamado, em um momento em que muitos americanos gostariam de acreditar que nós resolvemos o problema da discriminação. Em Ferguson, estamos lidando com uma comunidade inteira que tem um baixo nível de instrução, com muitos desempregados ou subempregados, privados de direitos, economica e socialmente excluídos da vida da comunidade. Então, todas essas coisas tomaram espaço. Hoje, não temos leis que excluem formalmente as pessoas de ir a um restaurante, de estudar em uma escola pública, de votar ou de se candidatar a um emprego. Nós sabemos que há muitas formas detestáveis de discriminação racial, disfarçadas e também não tão disfarçadas, que limitam as oportunidades de vida de jovens em comunidades como Ferguson. Para mim, Ferguson representa o desafio e a oportunidade. O desafio é reconhecer que, mesmo em um país que legalmente superou a subordinação, as pessoas continuam a ser excluídas. O direito pode fazer parte desse trabalho. Por exemplo, tratando do comportamento dos policiais para com os jovens descendentes de latinos ou africanos, do racismo de todos os dias por parte dos policiais que deveriam protegê-los.

Como esse sentimento se reflete na perspectiva desses jovens?

Tenho um amigo artista que ensina em uma escola e um dos exercícios que ele faz com os alunos é desenhar um retrato deles daqui a dez anos. E muitos desses jovens, do Bronx, de East New York, desenharam-se atrás das grades, em prisões. Isso é de partir o coração. Enfrentamos esse problema do caminho da escola para a prisão, do encarceramento epidêmico. Ao invés de investirem em hospitais, parques e em centros de cuidados para as crianças, investem em prisões. Eu me lembro de quando eu era um garoto, minha mãe era uma ativista pelos direitos civis. Pensar que hoje nós temos as leis [de garantia dos direitos civis] e, ainda assim, os latinos e afro-americanos, mesmo sob a administração de Obama, estão excluídos economicamente, é a contradição. Nós temos que encarar a questão da igualdade, não só de direitos civis, mas também da justiça social e econômica. Ou as próximas gerações vão encarar uma estrutura de desigualdade, ainda que estrutura legal se proponha a proteger os direitos básicos das pessoas. Lei e justiça não são a mesma coisa. A lei pode ser usada como um álibi e uma justificativa para perpetuar a desigualdade e a injustiça.

Qual a sua opinião sobre as ações afirmativas? Aqui no Brasil, muitos dizem que as cotas aumentam a discriminação...

Eu não acredito que o preconceito racial possa aumentar a partir de medidas de consciência racial. O fato é que, acredita-se amplamente no Brasil, que o país é uma democracia racial. Eu acho que todo brasileiro sabe, em seu coração, que seria difícil, talvez impossível, no Brasil atual, um negro ser eleito presidente. Ainda que a narrativa oficial seja de que a raça não importa no Brasil. As universidades instituíram as ações afirmativa porque é uma oportunidade para o Brasil de continuar o caminho de democratização. As pessoas que trabalham no Judiciário, no Executivo, que dirigem essas instituições, que estão à frente dos jornais e TVs refletem a diversidade dos brasileiros? No meu ponto de vista, somente quando isso acontecer, os brasileiros poderão dizer que o Brasil é verdadeiramente uma democracia racial. E só ir a uma favela pacificada, que estão militarizadas, são semelhantes aos guetos nos EUA. Onde estão os hospitais nas favelas? Onde estão as universidades nas favelas? Quanto aos EUA, eu sou neto de um pastor batista, fui criado a maior parte do tempo pelos meus avós, minha mãe era uma menina adolescente quando nasci. Estudei em escolas públicas e, aos 17 anos, entrei na Universidade Yale, onde recebi meu diploma de Direito, o que realmente mudou minha vida. Sou um “bebê das ações afirmativas”, para usar a expressão do professor americano Stephen Carter. Não sei se teria tido as oportunidades que tive, sem as ações afirmativas. Estatisticamente, havia muitas coisas contra mim. As ações afirmativas trazem para negros e latinos, oportunidades que antes não existiam.

Temos muitas diferenças entre civil law e common law. Mas o que podemos aprender uns com os outros?

Essa é uma questão excelente. Como você sabe, estou ministrando um curso sobre Constituição dos EUA para estudantes aqui do Paraná. A principal razão pela qual aceitei fazer isso não é pelo que posso ensinar a esses estudantes, mas pelo que posso aprender com eles. Adoro a experiência de aprendizado colaborativo. Aprendi que o Brasil tem um novo Código de Processo Civil. E que esse código trata não somente da condução dos processos, mas também de estabelecer uma jurisprudência. Isso inclui consistência, integridade e coerência. Esses são valores que temos na tradição do common law dos EUA, herdada do Reino Unido. Esses valores representam uma compreensão muito específica do papel do Judiciário e, do juiz individualmente, e da prática de julgar, não apenas no âmbito da atuação profissional, mas também da atuação do juiz como cidadão em uma sociedade democrática, como representante da lei.

Muitos acreditam que o novo CPC vai trazer a cultura dos precedentes e tornar nosso sistema mais rápido...

Minha impressão é que muitos dos argumentos favoráveis aos precedentes são guiado pela noção de eficiência. Na minha opinião, essa é parte do caminho, e traz noção de que com o precedente o juiz não vai precisar pensar e simplesmente vai aplicar os casos anteriores. Mas eu acho que é mais difícil para o juiz trabalhar com esse sistema, pois tem que explicar suas decisões em relação aos casos relevantes anteriores. O desafio é oferecer uma explicação persuasiva tanto na perspectiva do direito, quanto dos fatos. Eu acredito que, em vez de recorrer ao argumento da eficiência, é mais forte o argumento de que o precedente é importante por trazer integridade e transparência à decisão do juiz. Advogados e cidadãos poderão ler as decisões e compará-las. O desenvolvimento do direito é um produto da conversa entre os operadores do direito sobre as decisões do passado e do presente.

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