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 | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

Quando encerrou sua carreira como ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Eliana Calmon esperava levar uma vida de aposentada. Mas, na realidade, ela não se distanciou tanto da rotina badalada que tinha nos tempos em que foi corregedora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A jurista atribui à sua sinceridade o fato de os holofotes ainda se voltarem para ela. “Não sou mulher de falar off”, explica.

Em entrevista ao Justiça & Direito, quando esteve em Curitiba na última terça-feira (8), ela relembrou sua atuação no CNJ e disse temer pelo futuro da instituição diante da Proposta de Emenda à Constituição que pretende criar um Conselho de Justiça formado pelos presidentes do Tribunais de Justiça.

A ex- ministra também não poupou críticas ao novo CPC, que classificou como uma “colcha de retalhos”.

Durante a entrevista, concedida no Dia Internacional da Mulher, ela descreveu o mundo do Judiciário como um “Clube do Bolinha” e a dificuldade que as mulheres têm para ascender a cargos de mais prestígio. Por outro lado, disse nunca ter se sentido discriminada e atribuiu isso a jeito durão.

Em relação ao momento político do país, ela se mostrou otimista e atribuiu ao Poder Judiciário e à imprensa o prosseguimento das iniciativas de combate à corrupção. “A delação premiada é o que temos de mais moderno quando falamos com técnicos que fazem as investigações das organizações criminosas”, salientou.

Entre tantos temas jurídicos e políticos, Eliana se empolgou ao falar de seu hobby: cozinhar. Mas ela avisa “Não sou uma gourmet, gosto de receitas que não deem muito trabalho, como receitas de micro-ondas e de liquidificador, com coisas que a gente sempre tem em casa”. Ela é autora do livro Resp – Receitas Especiais [um trocadilho com Recursos Especiais] que segundo ela fez muito sucesso entre mulheres ocupadas e entre empregadas domésticas. A obra é difícil de ser encontrada no mercado, pois ela doou os direitos autorais a uma creche, que não produziu novas edições.

A sua atuação como corregedora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi expressiva, mexeu com os brios da magistratura e teve grande destaque na imprensa e perante a opinião pública.

Agora, do lado de fora, como a senhora avalia a atuação do Conselho?

Quando o CNJ foi criado ninguém acreditava que teria expressão. O Judiciário não queria ir para lá, fizeram campanha contra. Tanto que as primeiras administrações do CNJ, que foram de pessoas muito boas, por exemplo, o Nelson Jobim. Esse contexto favoreceu a ele para escolher a dedo as pessoas que foram para lá para mudar o quadro administrativo da Justiça brasileira. E, a partir daí o CNJ, começou a ter uma expressão muito grande. Na parte disciplinar, isso veio à tona já com o ministro Gilson Dipp, a partir de 2009, na gestão antecedente à minha. Observe que o CNJ foi criado em 2004, com a Emenda Constitucional 45. Mas, a partir de 2009, o ministro Dipp, aliado ao ministro Gilmar Mendes, foi quem despontou para esta questão disciplinar.

Ficha técnica

Naturalidade: Salvador-BA

Currículo: Procuradora da República em Pernambuco e Brasília; juíza federal (1979); desembargadora federal (1989); primeira mulher a ser ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) (1999); corregedora do Conselho Nacional de Justiça (2010) ; diretora da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam)

Juristas que admira: Joaquim Calmon de Passos, Orlando Gomes e Sálvio de Figueiredo Teixeira

Livro: O Sári Vermelho, Javier Moro

Na horas vagas: gosta cozinhar receitas práticas

E qual foi seu foco quando assumiu?

Quando assumi, fui ao foco principal dos problemas maiores do Poder Judiciário, que estava em São Paulo. E isso me foi dito por Gilmar Mendes: se você não for a São Paulo para fazer a correição que aquele tribunal merece, você não fez nada na Justiça, porque por ali tramitam 60% dos processos brasileiros. E foi exatamente a partir dali que começou a haver resistência, e esta resistência não parou mais. Ali, com essas duas administrações na corregedoria – o ministro Dipp e a ministra Eliana Calmon –, ficou constatada a força do CNJ e que eles podiam realmente desbancar magistrados que estavam há muitos anos com procedimentos que não aceitávamos. A partir daí, o corporativismo começou a ser usado para liquidar o CNJ. Hoje, praticamente este poder disciplinar está totalmente difuso - não está se fazendo nada – Avizinha-se uma emenda constitucional que vai liquidar o CNJ que é a criação do Conselho de Justiça formado por presidentes de todos os tribunais [estaduais]. Este órgão é o mais corporativista que existe, porque já existe oficiosamente o colégio de presidentes [de tribunais de Justiça].

A senhora foi a primeira mulher a ser ministra do STJ. O que mudou de lá para cá? O que ainda precisa mudar?

Eu entendo que houve uma mudança significativa. As mulheres estão mais conscientes à questão de todas essas as políticas públicas voltadas para coibir a violência contra a mulher. A mulher está tomando mais consciência, está denunciando mais, está falando mais. Isso é importante. Acho muito significativo, porque as mulheres que fazem parte do mundo do empoderamento que são as magistradas, as executivas, que sempre acharam que eram bobagens esses movimentos feministas, hoje estão conscientes que são necessários. Então, isso é importantíssimo, porque, há até pouco tempo, as mulheres, principalmente as do Poder Judiciário, abominavam os movimentos feministas, achavam que aquilo era coisa de mulher e que era um pouco de oba-oba, que os direitos já eram iguais e não havia necessidade desses movimentos. No entanto, a realidade é bem diferente. Nós sabemos que as coisas ainda não aconteceram no plano da vida real. Então, eu fico muito entusiasmada em ver que mulheres que eram absolutamente insensíveis a movimentos feministas hoje já estão mais engajadas e já não falam contra os movimentos de uma forma tão aberta como falavam antigamente.

O ingresso da mulher é por concurso, mas à medida que vai subindo na hierarquia vai se limitando – a escolha é dos seus pares, que sempre foram do Clube do Bolinha

E com relação à sua vivência, a senhora sentiu discriminação pelo fato de ser mulher?

Eu sou uma mulher muito forte de personalidade, dada ao enfrentamento. Nunca me preocupei com o preconceito contra a mulher. Se tiveram, tiveram por contra própria e eu fui seguindo o meu caminho. Sempre senti que as minhas colegas magistradas entendiam que o fato de eu fazer parte dos movimentos feministas era alguma coisa que não estava muito bem para uma magistrada. Muito embora, na hora que estavam para subir ao poder, todo mundo começava a procurar os movimentos feministas e eu sei disso porque eu era a intermediária. No Poder Judiciário é assim: o ingresso da mulher é por concurso, mas à medida que vai subindo na hierarquia vai se limitando – a escolha é dos seus pares, que sempre foram do Clube do Bolinha. Isso foi detectado em 1996, quando estavam fazendo os levantamentos estatísticos para levar ao Congresso Internacional de Mulheres, em Pequim. Começaram a notar essa diferença do Poder Judiciário. O Poder Judiciário foi o último a acolher a mulher. As poucas mulheres que chegavam aos cargos de magistrada, desembargadora e depois a presidente do tribunal pensavam que chegavam porque elas eram melhores [que as outras], porque foram aquinhoadas com as escolhas de seus pares. E isso acontecia porque só chegavam mulheres bobas, que não incomodavam e serviam de massa de manobra para o poder. Ou seja, elegiam como presidente do tribunal e por trás estrava os homens e os desembargadores mandando e elas não tinha a percepção desta regra do jogo.

E a senhora não ficou surpresa quando chegou ao STJ?

Sempre achei dificílimo eu chegar ao STJ. Porque eu dizia: uma mulher com um meu perfil não chegará lá, eles não vão deixar. Eles não vão votar em uma mulher testa dura, brigona, que fala muito, que leva os pecados e as entranhas do Poder Judiciário à imprensa. Porque eu sempre fiz isso. Sempre achei que a publicização das coisas erradas do Judiciário era uma forma de corrigi-las. Achei que isso fosse prejudicar o meu acesso. E me enganei. Porque já da primeira vez que me candidatei, para experimentar, eu já tive uma votação expressiva. De forma que, quando eu cheguei ao STJ, já cheguei com um tribunal que estava maduro para receber uma mulher. E me enganei porque eu dizia que a primeira mulher que chegasse lá seria uma mulher boba e que não incomodasse. E eu incomodo porque eu digo e critico.

A delação premiada é o que temos de mais moderno quando falamos com técnicos que fazem as investigações das organizações criminosas

Qual a sua leitura sobre o atual momento político do país, os escândalos sobre corrupção e a Operação Lava-Jato?

Sou otimista, vejo o Brasil dando um passo adiante. O Brasil sempre foi um país de corruptos desde o Brasil colônia. A diferença de agora é que por um erro de percepção diante de uma forma partidária grande, os corruptos se descuidaram e deixaram as pegadas da corrupção. A Constituição de 1988 permite uma nova gerência do Poder Judiciário e, desta forma, nós podemos saber as coisas que se passam graças à penetração da Justiça e ao trabalho da imprensa. A imprensa está acompanhando tudo passo a passo e a sociedade brasileira está tomando conhecimento, através da imprensa, do que se passa no âmago do poder. Isso é uma evolução? Acho que sim.

Qual a sua opinião sobre a delação premiada?

A delação premiada é o que temos de mais moderno quando falamos com técnicos que fazem as investigações das organizações criminosas. No mundo inteiro é assim. Para vencer as organizações criminosas, onde existe uma quantidade de dinheiro circulante, com a possibilidade de compra de pessoas em um país pobre como o Brasil. Neste momento, há esta forma de proceder como aconteceu na Itália. Foi a única forma de vencer a máfia – política de Mãos Limpas – através da delação. Aquele que foi comprado dentro do esquema da organização criminosa passa a ter benesse se falar. Não falava porque temia o outro lado e ficava preocupado porque, tradicionalmente, quem era punido no Brasil eram as pessoas que delatavam. Tanto que a figura do delator sempre foi execrada como a de um homem sem caráter. Isso começa a inverter com a delação premiada e o acordo de leniência.

E o acordo de leniência também é eficaz?

O governo tentou, através de uma reforma, por decreto do acordo de leniência, sem a participação da Justiça, intervir na delação premiada com o acordo de leniência. Faz o acordo sem o aval da Justiça e, a partir daí, eles dão um perdão. Daqui há dois anos, a empresa pode funcionar. Mas não deu certo, porque foi a primeira tentativa de impedir uma delação mais robusta. Não deu certo porque as pessoas estão preocupadas com as prisões e, à medida em que estão sendo presas apresentam provas robustas da participação. É Através da prisão que as pessoas ficam mais sensibilizadas e querem um perdão pessoal, para saírem daquela situação vexatória.

A senhora está em Curitiba para participar de eventos de lançamento do livro do juiz Marlos Melek, que pretende apresentar o direito do trabalho para o público leigo, sem juridiquês. O que a senhora acha desse tipo de iniciativa?

Marlos sempre foi um juiz diferente, por isso, ele foi um juiz corregedor que me ajudou nos projetos que sugeriu e que terminou planejando e executando com a corregedoria. Ele sempre foi um juiz muito prático, voltado aos problemas do cotidiano da Justiça, sem se importar muito com essa história de que juiz só fala nos autos, o juiz só fala tecnicamente, processo é ciência e como ciência deve ser blá, blá, blá. Isso me agradou muito, porque eu sou do mesmo estilo. E ele resolveu colocar no papel aquilo que pensa da Justiça. A Justiça precisa se descomplicar. Ela existe para servir aos cidadãos e os cidadãos precisam entender a linguagem da Justiça. Ele traduziu como juiz com sensibilidade para com a sociedade. Ele começou desmistificar os meandros da Justiça do Trabalho. Uma Justiça importantíssima porque, por ela, passam todas as empresas – pequenas, médias e grandes. É uma queixa porque eles não conseguem entender a linguagem desta Justiça. Eu venho à Curitiba para o lançamento porque eu apoio este livro, ele faz parte dos meus projetos de magistrada, que é para promover a simplicidade para as coisas da justiça.

A senhora é especialista em processo civil, como avalia o novo CPC?

Me parece que será um pouco complicado. O Código de Processo Civil está mais ou menos como uma colcha de retalhos. Ele está sendo objeto de muitos questionamentos. O DNA do CPC são os advogados, porque a comissão era basicamente composta por advogados. É um código que fala de honorários 82 vezes. Honorários, honorários, honorários. Aquilo que o advogado ganhava ao final da ação, hoje vem sendo escalonado, e ele vai ganhando a cada etapa do processo. Entendo que isso será uma complicação inclusive para a magistratura. Porque o juiz que tem que fazer o arbitramento. E o arbitramento não pode mais ficar a critério do juiz, tem de ser através do valor da causa.

A parte de recursos também não ficou boa. Os grandes problemas estão na parte recursal. E o código tem alguns pecados: acabou com embargos infringentes. Mas se tornou preocupante, porque tem infringentes de decisão não unânime. Então, acabou, mas não acabou. Criou também outra hipótese de embargos de declaração. As safadezas na Justiça são feitas quase todas através dos embargos de declaração, porque se você aumenta a possibilidade de embargar, o juiz não tem sossego, julga e rejulga e, multas vezes, a multa não é suficiente para barrar.

E como agir diante de todos esses desafios?

Eu entendo que se o código foi aprovado, não vamos falar mal, vamos estudar para aplicar da melhor maneira possível. Não adianta falar dos males do código, vamos falar as coisas boas, porque também direcionou a magistratura. Nunca se deu uma resposta positiva e agora é preciso dar estas resposta positivas. As decisões têm que ser todas fundamentadas, é obrigatório. Extinguir o processo e não dar satisfação não existe mais.

Como está sendo a sua vida após a aposentadoria? Em 2013, quando esteve aqui enquanto era corregedora do CNJ, a senhora disse, em uma entrevista ao Justiça & Direito, que sua vida parecia a de uma pop star. Agora, a rotina está mais tranquila?

Pensei que seria uma aposentada e não estou sendo. Continuo alvo de holofotes e da imprensa que me procura para dar opinião política e do momento. Isso faz parte da minha personalidade. Em primeiro lugar eu falo e digo o que penso. Em segundo lugar, há algumas coisas que eu entendo que são necessárias para fazer a correção do Poder Judiciário e que eu delato. Não falo em off. Não sou mulher para falar em off. Falo, digo e assino meu nome. Isso tudo faz com que me procurem. Se eu não conhecer a pessoa eu digo que não tenho informação para dar. Tenho credibilidade. Sempre quero mostrar onde está a prova da veracidade daquilo que eu estou dizendo. Também faço muita palestra, faz parte da minha participação na cidadania dizer para o público aquilo que se passa nos bastidores da justiça.

A senhora está advogando?

Eu não faço contencioso. Só faço pareceres e consultas. O contencioso indica que você tem que ir à Justiça e isso me dá um pouco de medo porque, como eu sou muito conhecida, muitas vezes me procuram para fazer uma advocacia de lobby. Hoje eu estou absolutamente fora disso. Então na consulta e nos pareceres eu dou minha opinião como jurista. Estou muito na área do compliance, que é o que o que se avizinha para o futuro. Hoje, credibilidade é algo que tem um peso enorme no mundo dos negócios e os advogados devem estar preparados para isso.

Colaborou: Beatriz Peccin

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