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A voz das ruas conquista direitos

Teoria política mostra a importância de os cidadãos se manifestarem e exercerem pressão para que suas necessidades e desejos sejam atendidos

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A Gazeta do Povo entrevistou o cientista político Rúrion Melo, especialista na obra do filósofo alemão Jürgen Habermas, para falar sobre Direito e mobilização social.

Quais são as contribuições que a teoria do Habermas poderia dar para o aprofundamento da democracia brasileira?Se estamos falando da teoria da democracia elaborada por Habermas (já que sua teoria crítica abarca muitas dimensões das ciências humanas e sociais), sua contribuição é digna de nota, mesmo que tenhamos de entender tal contribuição de forma indireta, claro. Pois não se trata de aplicar diretamente sua teoria ao contexto político brasileiro (o que seria no mínimo contraproducente!), mas mesclar suas intuições teóricas com os contextos empíricos em questão.

Habermas ofereceu um quadro teórico capaz de nos ajudar a explicar fenômenos políticos e sociais familiares à nossa democracia.

Primeiramente, ele defendeu a tese de acordo com a qual não é possível Estado de direito sem democracia radical. Os cidadãos não apenas reconhecem a validade do direito como simples ordens que lhes são impostas de maneira obrigatória, não exercem somente o papel de meros "destinatários", mas também o de "autores" do direito.

Além disso, Habermas elaborou uma concepção de esfera pública política na qual é possível observar um processo de "circulação do poder" em que a mobilização e a pressão dos cidadãos sobre o sistema político pode provocar transformações institucionais importantes. De forma alguma ele disse que transformações ocorrem necessariamente e que, quando ocorrem, são sempre boas. Mas sua teoria nos ajuda a reconstruir o sentido de muitas das transformações em curso do ponto de vista da legitimidade democrática.

Juntando esses aspectos mencionados, poderíamos entender que a atuação dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada pressionando o sistema político seria indício de que os cidadãos exigem mais do que simplesmente aceitar desempenhar o papel de destinatários. Os conflitos sociais não se esgotam apenas em si mesmos, eles podem produzir também uma democratização das instituições formais.

Contudo, esse esquema bastante sucinto ao qual me referi não pode ser compreendido de maneira abstrata e idealista. Como nada na política está decidido de antemão, o ônus da legitimação é carregado pelos próprios concernidos, exigindo dos cidadãos uma disposição para a práxis política, isto é, que assumam o papel de participantes. Habermas adverte que a ligação necessária entre direito e democracia é antes de tudo uma tarefa prático-política a ser levada a cabo pelos próprios cidadãos.

O sr. fala em mobilização e pressão para que haja institucionalização de direitos. Isso exige que tipo de organização social para que funcione?

Uma parte do processo é e precisa ser difusa. Temas envolvendo violência urbana, racismo, homofobia, discriminação de gênero etc. circulam pelo espaço social (na maior parte das vezes de maneira velada, mas em muitos casos tais patologias vêm à tona), ficando impregnadas na nossa cultura de fundo (expressas em filmes, literatura, jornais, televisão, internet etc.). Isso pode ou não colocar em movimento manifestações de revolta que reverberam com maior ou menor força no sistema político.

Na maior parte das vezes, porém, temos de olhar para a relação da sociedade civil com as instituições jurídicas para compreender as formas de organização e avaliar seus êxitos. Há uma estrutura institucional complexa envolvendo partidos e outras organizações associativas (ONGs), tipos diferentes de atividades jurídicas (que conta com consultorias jurídicas, advocacia de interesse público) e órgãos como Ministério Público ou a Defensoria Pública. Já existem diversas pesquisas mostrando como o desenho institucional de órgãos de litígio favorece ou não a mobilização social jurídica, ou como em longo prazo a mobilização jurídica da sociedade civil repercute nas instituições do Estado.

A democracia brasileira poderia se beneficiar de mais canais para que haja deliberação? A democracia deliberativa poderia aprofundar a democracia brasileira? Em que sentido?

Existem diferentes concepções de democracia deliberativa em voga. Em linhas gerais, elas procuram radicalizar a ideia de que o Estado de direito está enraizado na vontade coletiva dos cidadãos. Sem desprezar os procedimentos formais de organização do poder político (regra da maioria, eleições periódicas, divisão de poderes), a concepção deliberativa da política afirma que os processos de tomada de decisão precisam ser absolutamente inclusivos e se fundamentar na deliberação dos cidadãos em fóruns públicos amplos de debate.

Práticas deliberativas estão presentes em muitas experiências associativas e têm se tornado modelo de institucionalização de conselhos em várias cidades do Brasil. Seu potencial crítico é imenso, exigindo que a justificação normativa sempre se ancore na autonomia dos cidadãos. Estamos longe de "realizar" um tal ideal de autolegislação, sem dúvida. Mas não podemos perdê-lo de vista, pois já convivemos com a expectativa de radicalizar os processos de formação da opinião e da vontade.

A reação massiva contra Marcos Feliciano na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara apontou para isso: toda justificação pública que se pretende democraticamente válida deve incluir o ponto de vista de todos os concernidos. O sentido da deliberação, portanto, é sempre o de trazer para o debate, dar voz incondicionalmente a todos, abrir espaço para ouvirmos as mulheres, os gays, os negros, os índios. Não tem nada a ver com o "consenso". Pelo contrário, trata-se antes de permitir o dissenso, tornar a esfera pública mais inclusiva e a práxis política um exercício democrático de autodeterminação por meio do uso público da razão.

Muitas vezes descreve-se a população brasileira como "politicamente apática". As manifestações recentes desmentem isso? Pode-se imaginar que estejamos criando uma cultura de pressão?

Há uma história política de muita mobilização social no Brasil. Exemplos históricos não faltariam para sustentar que, em momentos decisivos, os movimentos sociais e a sociedade civil organizada exerceram uma pressão pública considerável. Não nego de maneira nenhuma que há sim um efeito reificante e despolitizador de sociedades constituídas fundamentalmente pelo mercado, e isso é um traço global. Mas nós soubemos liberar nossa energia política paralizada. Não me refiro necessariamente às grandes manifestações que marcaram nossa história recente (movimentos de resistência, movimentos sindicais, Diretas Já, Impeachment ou as "revoltas de junho"). Protestos e reivindicações pontuais marcam a agenda cotidiana de nossas grandes metrópoles, do bairro às irrupções centrais. O Brasil se tornou inclusive uma espécie de "exportador" de modelos participativos (veja-se o reconhecimento internacional, por exemplo, da experiência do Orçamento Participativo).

As "revoltas de junho" nos marcaram por diversos fatores (pela participação maciça, forte intensidade, novas formas de manifestação, horizontalidade, impulso autonomista). Agora já voltamos a lidar com mobilizações pontuais, mais ou menos intensas. Seria precipitado dizer que se consolidou uma "cultura de pressão". Voltaremos a reagir nos momentos que nossa liberdade estiver em risco. É que o recado agora é mais generalizado. As pessoas estão indignadas, sabem que é necessário uma reforma radical do sistema político, que não aceitam mais meras justificações para as decisões do poder, que querem tirar o projeto da democracia de dentro do jogo do sistema político e realizá-lo com consciência e vontade.

As reações dos representantes políticos à pressão popular ocorre normalmente no longo prazo. Quais conquistas recentes podem ser citadas como demonstração empírica de que as mudanças acabam vindo?

Vamos olhar novamente para a relação entre direito e sociedade hoje. De um lado, ocorreu uma mudança significativa de atitude dos movimentos sociais e da sociedade civil para ver no direito um potencial libertador que precisa ser aproveitado em termos práticos. Instituições jurídicas podem criar obstáculos, cristalizando, burocratizando ou ainda criminalizando. Contudo, não são mais consideradas politicamente neutras: devem ser disputadas.

O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, ao autorizar a união estável entre homossexuais, valida uma demanda social de longa data por reconhecimento reclamada pelo movimento LGBT (que já está presente nas esferas íntimas, toma a esfera pública e rebate no sistema político). Eu poderia ainda citar o processo acerca da implementação da Lei Maria da Penha ou da legislação antirracismo, entre outros.

Note-se que, em todos estes casos, as conquistas continuam sendo questionadas pelos próprios concernidos. Leis são estabelecidas e modificadas, voltando a ser objeto de disputa pelos movimentos. Mas precisamente nisso o direito revela sua ambiguidade, pois leis positivas podem produzir efeitos colaterais indesejados. Tal ambiguidade só se resolve quando radicalizamos a ideia central de uma autolegislação, forçando o sistema político a se manter aberto à formação da opinião e da vontade e retraçando as fronteiras entre a sociedade e suas instituições formais. O movimento LGBT nem teve tempo de comemorar a união homoafetiva e já começou a questionar os termos de justificação por parte do STF que, para muitos dos concernidos, está aquém das pautas correspondentes.

Claro que estamos diante de casos que há bastante tempo exercem pressão constante sobre o Estado e envolvem uma série de instituições intermediárias. Foi muito diferente a reação do governo federal às "revoltas de junho", por exemplo, se relembramos os tais "cinco pactos" aprovados pelo Congresso Nacional (responsabilidade fiscal, reforma política, saúde, mobilidade urbana, educação), o plebiscito etc. Pelo o que vimos, não passou de uma rápida e pontual reação estratégica do governo que ficou pelo caminho.

Há uma crise de representação no Brasil hoje? Como essa pressão social poderia ajudar a resolver isso?

Há uma crise de representação apenas se a entendemos nos termos de um projeto democrático de auto-organização radical da sociedade. O impulso autonomista dos movimentos sociais recentes está minando as barreiras das instituições formais. Não é mais suficiente ver a vida política democrática encapsulada no Estado. A democracia precisa também de um sentido novo de auto-organização e isso exige construir novas instituições formais, novos modos de associação e de representação.

Contudo, sem mobilização e sem luta não conseguiremos mais aprofundar um processo que entrou em curso desde 1988. Parecemos estar conscientes de que o sistema político é pouco reflexivo e muito engessado. E não basta apenas uma reforma paliativa do sistema para democratizá-lo. O que vai para as ruas é descontentamento e também a reivindicação por uma cultura política mais ativa. Será que podemos entrever um desenho institucional adequado para tais reivindicações?

O problema é ainda mais complicado porque não é esse tipo de resposta que o governo pode dar à pressão social atualmente. Os cidadãos estão revoltados precisamente com as decisões (que afetam todos nós) de um sistema que se pretendeu intocado e imutável. As únicas determinações legítimas agora são aquelas fundadas na autonomia política. Isso significa que as configurações institucionais neste momento não podem abarcar os impulsos democratizantes que derivam de muitas das manifestações recentes, pois a vida política democrática extrapola o sistema político.

De qualquer modo, toda institucionalização precisa ser compreendida como processo de democratização. Os protestos sociais nos fazem olhar para a "circulação de poder" à qual eu me referi na primeira pergunta. Eles nos lembram que o aprofundamento da democracia exige que o sistema político abaixe suas barreiras contra a sociedade. E sabemos que, em geral, o sistema político só recua sob pressão. Não estou falando em abolir definitivamente a fronteira entre Estado e sociedade (não é este o tipo de reivindicação mais importante), mas em forçar a abertura de espaços para mais participação e deliberação.

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