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A capitã e os refugiados: um debate sobre princípios
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A vida é um tesouro, o dom mais importante que recebemos. Não há vida mais importante que a outra, somos iguais e únicos, irrepetíveis. Toda vida humana é dotada de dignidade, independentemente das atitudes do indivíduo: a dignidade é intrínseca à existência humana.

Se eu perguntar quem discorda dessas frases, vai ser difícil encontrar. Mas e quando essas afirmações são colocadas à prova, será que todos são capazes de se manter fiéis a elas independentemente do debate público da moda? Ou será que os valores do tempo presente acabam sufocando os princípios que deveriam ser atemporais?

Os princípios e questionamentos encontram a prova da realidade em um caso que está dividindo a Europa: a capitã alemã que socorreu refugiados africanos em alto-mar e os levou a um porto italiano. Presa na Itália, com comemoração do governo, foi solta pelo Poder Judiciário hoje.

Não se trata da capitã de um navio qualquer que, ao fazer suas atividades rotineiras, deparou-se com pessoas em perigo e resolveu agir. A história é outra. Carola Rackete é a capitã da embarcação de uma ONG chamada Sea-Watch, dedicada a patrulhamento e salvamento de refugiados que tentam atravessar o Mar Mediterrâneo rumo à Europa.

No ano passado, segundo os registros da ONU, 2300 pessoas morreram tentando fazer essa travessia. Como há uma crise migratória na Europa, as reações dos países são as mais diversas, levando em conta a realidade, a cultura e a política de cada um.

No caso da Itália, a opção é por impor o máximo de dificuldades, o que inclui não fazer mais patrulhas no mar em busca de imigrantes que estejam à deriva ou em risco de vida. Politicamente, um golaço: é majoritário o pensamento contra a imigração e ela realmente diminuiu com a medida. O problema é que morre gente, muita gente.

Ah, mas por que eles não ficam nos países deles e querem ir para a Europa? Dificuldades na vida dos outros são sempre transponíveis. Eu sou neta de imigrantes ilegais, cresci ouvindo as histórias de quem realmente acreditava que sair do próprio país sem documentos ou com documentos falsos era a única forma de tocar a vida. Entendo perfeitamente quem assuma o risco.

Conheço também a conversinha pedante de quem nunca enfrentou grandes dificuldades, teve a vida forrada de comodidades e se põe a julgar imigrantes. Também ouvi, às fartas, as histórias de humilhações sofridas por quem resolve construir a vida num país que não é o seu.

O fato é que ambos os questionamentos vêm da conclusão prática, ainda que negada no campo intelectual, de que algumas vidas são mais dignas que as outras e que, em última análise, algumas vidas valem mais do que as outras.

Temos de respeitar leis. Isso é fato. A capitã do navio recolheu pessoas que realmente teriam morrido não fosse a ação dela, mas foi orientada a não entrar na Itália, onde esses imigrantes não seriam aceitos. É a lei, que se cumpra, certo? Escravidão também foi lei e nossos heróis não são os que defenderam seu cumprimento em detrimento da vida e da dignidade humana.

Qual valor fala mais alto? Vida? Dignidade? Lei? Ordem? Repare que nem estou entrando nessa onda nefasta de ódio ao estrangeiro e de medo do diferente. A discussão é sobre princípios, todos bons, que às vezes colidem na vida real.

Não há dúvidas de que a capitã do Sea-Watch estava fazendo também um manifesto político, dada a diferença enorme entre as políticas da Itália e da Alemanha na questão migratória. Alguns questionam por que ela não levou as pessoas ao seu país. Não era possível. As alternativas eram Tripoli, na Líbia, e Lampedusa, na Itália. Ela escolheu a Itália, onde as pessoas que precisaram foram imediatamente socorridas em hospitais.

Não podemos negar que, ao mesmo tempo em que fez seu manifesto político, Carola Rackete efetivamente salvou 42 vidas humanas. Para quem realmente crê que os valores mais caros da sociedade são a vida e a dignidade, existe um fato incontestável que é o salvamento de quem poderia morrer.

A Justiça da Itália considerou que não faz sentido prender a capitã-ativista: ela cumpriu com o dever de salvaguarda do maior bem jurídico que existe, a vida. Segundo a juíza Alessandra Vella, foi cumprido o dever de salvar vidas no mar.

A imprensa não gostou e questionou a falta de punição para a atitude de violar o bloqueio de portos da Itália e avançar com a embarcação para cima de outra do governo, que tentava impedir sua entrada. O Ministro do Exterior, Matteo Salvini, soltou os cachorros no twitter, bem do jeito que está na moda entre os políticos no mundo todo.

A capitã tem sido ameaçada de morte e muito xingada desde que foi solta. Também vai ter de enfrentar julgamento onde pode ser condenada ao pagamento de multa por desrespeitar as leis italianas. Por outro lado, a ONG Sea-Watch conseguiu depois do caso a maior arrecadação de dinheiro em sua história.

Nada é simples nesse caso e, na era em que vários seres humanos se converteram em metralhadoras de opinião, o mais fácil é julgar os imigrantes. Como os problemas reais que os levaram a optar pela imigração ilegal são desconhecidos, é fácil colocá-los na esfera do imaginário fantástico, onde seriam resolvidos de outra forma com a maior certeza.

A dificuldade é sempre nos colocar no lugar de quem tem problemas e dilemas que conhecemos. Tente se colocar no lugar da capitã: ela é uma ativista e realmente viu pessoas que corriam o risco de morrer. O que você faria no lugar dela? Coloque-se no lugar da polícia italiana, que desembarcou ao mesmo tempo uma capitã-ativista e pessoas levadas à emergência de um hospital: você julgaria correta a prisão?

Como último questionamento pessoal, sugiro o encontro da teoria com a prática. Suas decisões obedecem os princípios atemporais que você acredita seguir e defender ou, quando confrontada a realidade, você se deixa levar pelas modas, circunstâncias e discussões políticas do momento?

Talvez você não tenha uma opinião formada. Se não tiver, qual o problema? Casos complexos como este servem, no mínimo, para nos mostrar que nenhum problema complexo tem soluções simples.

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