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A era do recalque
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Imagine que você é adolescente e seus pais te deram de presente uma viagem à Europa junto com os amigos da escola. Você comemoraria? Na era do recalque, parece que é proibido.

Obviamente, uma minoria de adolescentes brasileiros tem essa oportunidade, infelizmente. Eu gostaria muito de ter tido e realmente sonho em poder dar ao meu filho a oportunidade de conhecer o mundo.

Uma adolescente chamada Andrezza decidiu fazer um punhado de tweets contando sua experiência pela Europa com a escola. As reações dos adultos foram tão violentas que ela acabou pedindo desculpas três vezes sem ter feito nada de que precisasse se desculpar.

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Postagem típica de adolescente mas uma felicidade impossível de perdoar para alguns justiceiros sociais de internet. Uma horda de adultos se prestou a humilhar a menina para tentar dar a entender que é moralmente superior. O raciocínio era tosco: ela deveria, em vez de comemorar a viagem, lutar pela igualdade, já que está em posição privilegiada.

São duas coisas que não se misturam. Todos nós, mesmo os que lutamos pela igualdade e nos dedicamos a trabalhos sociais, também temos o direito de desfrutar das oportunidades que a vida nos oferece.

Eu passei minha gravidez em Angola, trabalhando com vacinação pela erradicação da pólio. Ainda assim, também gosto de viagens para lugares legais e amaria que meu filho, gestado lá e já afeito ao trabalho social, pudesse ter oportunidades melhores do que todas as que eu tive. Tomara que ele tenha também o direito de comemorar, como eu fiz antes das redes sociais serem tomadas pelo barulho das almas raivosas.

Confira algumas reações aos tweets da garota falando da viagem:

São apenas alguns e dos mais leves. Quanto o ataque virtual começa, as pessoas vão perdendo a sensibilidade aos poucos. Depois do primeiro, a coisa vai ficando mais agressiva. É verdade que depois muita gente apareceu para defender a menina e, neste momento, ao entrar na página, já há um equilíbrio entre postagens de ataque e de defesa.

Mas o fato é que, com a reação inesperada a uma postagem inocente, a adolescente começou a achar que ela havia realmente feito algo de errado. Medimos nosso mundo por princípios e por comparação. Longe de casa e, provavelmente fora do alcance do conselho de um adulto, ela realmente começou a achar que a errada era ela.

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Na última postagem, a garota expressa se julgar hipócrita e, pela terceira vez, pede desculpas por provocar ou debochar de alguém. Foram tantas e tão virulentas as manifestações que ela realmente se descolou da realidade, passou a ver tweets absolutamente normais de comemoração como um ultraje à sociedade.

É algo comum de acontecer nas redes sociais, confundir quantidade de manifestações com ter razão. Há os que confundem até quantidade de likes com credibilidade ou competência. Fosse assim, os vídeos pornôs mais ousados do XVideos não bateriam com folga os cursos online gratuitos do MIT.

Não temos duas vidas ou duas personalidades, uma online e outra offline. Cada um de nós é uma única pessoa, que expressa seu caráter tanto na internet quanto nas interações pessoais. Obviamente os canalhas aproveitam para espalhar suas perturbações mentais pelo mundo quando se encontram sob o escudo do anonimato, por isso temos a ilusão de que há os que sejam mais violentos na internet. Não são, são assim o tempo todo em sentimento, agem quando a sociedade permite. Por enquanto, permitimos na internet. Há os que escalam.

Os que se manifestaram nas postagens falando em justiça social não necessariamente se comportam assim, mas gostam de passar a imagem de quem luta por igualdade. Fosse uma luta real, não dedicariam tempo precioso a expor e praticar bullying contra uma adolescente.

O caso é que existe quem veja uma manifestação de inveja, ódio ou agressividade e leia de forma diferente. Não duvido que haja os que olham as respostas ao tweet da adolescente e considerem um ato corajoso, quase revolucionário, enfrentar o sistema por meio da agressão a uma adolescente rica.

Vivemos a época em que as narrativas não podem ser confrontadas pelos fatos. Confundimos agressividade com liderança, narcisismo com carisma, autoconfiança com competência, arrogância com sucesso.

Dependendo da narrativa, os atos e características que devem ser alertas de perigo podem ser transformados em qualidades. Quando os fatos pouco importam e as biografias não são levadas em conta, formamos uma sociedade que premia malfeitos quando são travestidos de boas intenções. Se este caminho for aceito passivamente pela maioria, seremos liderados pelos que tiverem mais soberba e menos autocontrole.

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