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A lenda urbana da ditadura que faz reformas
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Até onde a gente pode ir para defender um filho? Eu, sinceramente, não sei dizer. Sou do tipo que abriria mão da própria vida para defender um filho. Também conheço pessoas que se sentem muito à vontade abandonando filhos à própria sorte. Cada ser humano é único e a construção da relação com cada um dos filhos é absolutamente singular. Há relações maravilhosas, profundas, emocionantes e também existem as tóxicas, problemáticas. Imagine arrastar 210 milhões de pessoas para um caso assim tão delicado.

É onde estamos. Uma equipe tratada como brilhante intelectualmente na área de economia acha mesmo que conseguirá fazer mudanças positivas enquanto arrasta um país para uma relação familiar complicada. Vivemos diariamente dos arroubos de um homem que fez 5 filhos em 3 mulheres diferentes, incluindo um fruto de aventura extra-conjugal, deixando um rastro de ressentimento não resolvido. Enfiou na política os rebentos, arena em que confundem a conturbada dinâmica familiar com o interesse público. O país virou o divã público de uma família desestruturada que se acha merecedora de benesses porque converteu histeria coletiva em votos.

Dizem que o filho a quem a gente mais se dedica é o mais problemático. Não sei se vale para todas as famílias, mas vale para a de Jair Bolsonaro. A relação com o filho Carlos é realmente umbilical.

Apesar de ser um homem de quase 40 anos de idade, em seu quinto mandato de vereador, é tratado como uma criancinha mimada. Dele não se cobra que trabalhe ou se porte como homem, pode fazer birra no chão do supermercado chamado Twitter o dia todo. E, quanto implica com algum amigo do papai, toca desfazer a relação. O problema é que agora esses amigos são ministros de Estado, gente com história e responsabilidades, que deveria servir o país, não os caprichos de uma família.

Carlos Bolsonaro foi levado no carro da posse presidencial, cena ridícula que se repetiu no 7 de setembro. Reúne-se com ministros em Brasília, despacha pelo pai quando está fora. Ao mesmo tempo, generais, ministros e aliados tentam dizer em off para os jornalistas que "não se deve levar a sério o que Carlos diz". Sim, muita coisa parece loucura. No entanto, há que se decidir: ou ele não deve ser levado a sério e tem de ser interditado ou ele deve sim responder pelo que faz e o que diz. Não dá para brincar das duas coisas ao mesmo tempo, carregando junto os destinos de 210 milhões de pessoas.

A última declaração delirante foi reforçando o que todos os membros da família dizem em público desde sempre: são fãs de ditadura. Já presidente, Jair Bolsonaro elogiou diversos ditadores, chegando a chamar de "estadista" o paraguaio Stroessner, rei da pedofilia em cuja casa acabam de ser achadas diversas ossadas humanas. Todos os filhos desfilam com camisetas homenageando Brilhante Ustra, torturador condenado.

Mas, desta vez, a torpeza foi diferente. Carlos Bolsonaro valeu-se da falta de respeito pelos fatos para tentar nos passar goela abaixo que ditaduras fazem reformas que interessam ao povo.

Obviamente o pai foi cobrado. Um presidente democraticamente eleito e que jurou defender a Constituição e a democracia deveria ter feito, em nome do povo, uma reprimenda pública à mentira do filho. Não fez. Aliás, fez o que se esperava dele: colocou os melindres dos rebentos mal resolvidos à frente dos interesses do Brasil. Numa ginástica intelectual de tirar o fôlego, corrobora a tese mentirosa de que ditaduras fazem reformas que interessam ao povo.

“É uma opinião dele, e ele tem razão. Se fosse em Cuba ou na Coreia do Norte, já não teriam aprovado tudo quanto é reforma sem Parlamento? Demora, porque tem a discussão. Isso é natural, porque tem muita gente que nos pressiona como se tivesse poder de influenciar o Parlamento. Não tenho esse poder e nem quero ter esse poder em nome da democracia. Ele até falou o óbvio. Eu, se estivesse estudando português no meu tempo de garoto, ia falar que essa é uma figura de linguagem conhecida como pleonasmo abusivo, como o leite é branco, o café é preto, e o gelo é gelado. Não devia ter essa repercussão toda. Teve porque é meu filho. Se fosse qualquer outra pessoa, não teria problema nenhum” - disse o presidente Jair Bolsonaro.

Seria muito interessante o presidente responder quais foram essas reformas tão importantes para o povo aprovadas em Cuba ou na Coreia do Norte. Nunca foram feitas e, enquanto houver ditadura, nunca serão. Não precisa. Somente a democracia força os donos do poder a atender anseios do povo.

Na lógica de desprezar os fatos, o presidente da República tem a pretensão de fazer com que o país acredite numa mentira ensurdecedora. Parece lógico que, tendo menos debate, seria muito mais fácil aprovar medidas que são boas para o povo. Só que a origem dessas medidas é justamente o debate. Quando o povo não tem voz, pode ser subjugado e, para se manter no poder, o governante não tem mais o dever de atender aos anseios do povo. Na lógica da ditadura, o poder emana da sustentação feita por uma pequena elite econômica, intelectual e militar. Eles não precisam de reformas, têm benesses.

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