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Quem tem medo de humor político?
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O cenário político brasileiro é palco de uma moralidade especialmente elástica que deu lugar aos políticos-teflon, aqueles em que nenhuma acusação cola. Uma forma muito peculiar de blindagem contra as críticas foi encontrada há 21 anos, por meio da Lei 9504/1997: proibir humor e sátiras envolvendo pré-candidatos no período que antecede eleições.

Por quê políticos acusados de tantos fatos sérios, alvos de tantas críticas contundentes vindas das bocas mais respeitadas e virulentas do país estavam tão preocupados com aquilo que, em princípio, não deve ser absolutamente levado a sério por se tratar de manifestação artística de humor? O julgamento final do STF, que derrubou a proibição após 21 anos por 11 votos a 0, deixou claro nas declarações um dito popular conhecido até das crianças: “É nas brincadeiras que dizemos as grandes verdades”.

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As discussões políticas das redes sociais escancaram um cenário político em que é tradicional a divisão por times, apartada de valores morais e éticos, com bandeiras moldadas ao sabor do vento e da oportunidade mais favorável ao líder messiânico de preferência de determinado grupo.

Pouco importa se chegou ao poder defendendo durante décadas a ética na política e delinquiu, a incoerência não é vista, continua sendo idolatrado. A oposição a ele surge nas mesmas bases, a de líderes que não podem ser questionados. Quando alguém se atreve a apontar qualquer incoerência objetiva, está exposto a uma inundação de acusações de traição ao movimento.

Na falta de lógica e de objetividade nas discussões políticas os questionamentos lógicos e objetivos têm menos força que a exposição desconcertante da verdade por meio do humor, uma forma de expressão que desafia as barreiras estabelecidas pelo discurso racionalmente organizado e a narrativa que os políticos aprenderam a controlar.

UM POUCO DE HISTÓRIA

Não é de hoje que os críticos políticos brasileiros driblam as barreiras de opinião criadas pelos legisladores por meio do humor. A criatividade que fala à alma da população foi fartamente exemplificada na fala do advogado da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão, Gustavo Binembojm, durante sua exposição no plenário do STF. A ABERT foi quem decidiu contestar legalmente a mordaça sobre os humoristas imposta em 1997 no Brasil.

Recordar frases antológicas do velho Aparício Torelli, o Barão de Itararé, que colocou na porta do seu jornal, A Manha, a frase ‘Entre sem Bater’, se referindo à polícia política de Vargas; ou que sintetizou a indignação social contra o Estado Novo dizendo ‘O Estado Novo é o estado a que chegamos’; ou Millôr Fernandes, que no último dia de mandato de um certo presidente da República, colocou-o sentado num vaso sanitário dizendo: ‘Manhê, acabei!’; ou outros artistas que até hoje ridicularizam candidatos como uma forma do processo de indignação da sociedade, como uma forma de crítica política evidentemente protegida pela Constituição de 1988. – exemplificou Gustavo Binembojm.

Em 2010, o ministro aposentado Ayres Britto concedeu liminar suspendendo os efeitos da Lei 9504-1997 nos limites à liberdade de expressão, o que permaneceu até que o julgamento fosse retomado no plenário do Supremo semana passada. O relator fez um balanço dos efeitos, demonstrando que não houve nenhuma candidatura prejudicada pela liberdade de expressão garantida aos brasileiros.

Nós tivemos já 4 eleições com essa lei suspensa, 2010, 2012, 2014, 2016 e não consta que a liberdade de expressão tenha atrapalhado qualquer resultado de eleição, muito pelo contrário. O acompanhamento jornalístico, o acompanhamento da mídia permite que a população tenha um razoável conhecimento dos assuntos para que se possa votar. – disse, em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes.

HUMOR É COISA SÉRIA

Em tempos de politicamente correto e das exposição de diversas confusões entre humilhação e tentativa de fazer graça expostas nas redes sociais, há uma efervescência no debate público brasileiro sobre o que é humor, como se não tivéssemos uma longa história na matéria, uma enorme galeria de gênios e notáveis que pagaram o preço da coragem, da ousadia e da presença de espírito.

No caso do humor político existe uma particularidade que o faz algo muito sério, o fato de ser libertador, atravessar todas as barreiras criadas por narrativas e construções político-partidárias com o valor inegável e desconcertante da verdade. O humor político não faz rir apenas por ser engraçado, mas também porque liberta.

A possibilidade de crítica pelos profissionais do humor, pelos artistas, pelos chargistas, é uma forma de crítica política, é uma forma de reflexão social sobre as contradições, sobre as hipocrisias, sobre as mazelas do processo político. E aqui relembro uma frase do grande cartunista Ziraldo, que certa vez afirmou que ‘o humor não é fazer rir, o humor é uma visão crítica do mundo e o riso é apenas o efeito libertador que ele provoca pela visão inesperada da verdade’. – explicou o advogado da ABERT Gustavo Binembojm.

Reconhecer o humor como liberdade de expressão não é ativo cultural da malemolência brasileira, é valor universal, abrigado sob a égide do livre debate de ideias, que admite também as expressões artísticas que misturam a distorção da realidade com a crítica política para expressão das opiniões e a busca da verdade dos fatos. Provocar a sociedade exemplificando o comportamento de suas figuras públicas é um direito da cidadania.

A Corte Europeia de Direitos Humanos referendou a importância do livre debate de ideias, afirmando que ‘a sátira é uma forma de expressão artística e de comentário social que, além da exacerbação e da deformação da realidade – que a caracterizam – visa, como é próprio, provocar, agitar. – disse o ministro Alexandre de Moraes.

Em seu voto, o ministro também lembrou uma verdade universal que muita gente poderia ter aprendido em casa, antes de buscar um mandato público abrigado sob o manto da privacidade a que têm direito aqueles que não se oferecem para tais cargos.

Quem não quer ser criticado, quem não quer ser satirizado, fique em casa! Não seja candidato, não se ofereça ao público, não se ofereça para exercer cargos políticos. Essa é uma regra que existe desde que o mundo é mundo. Querer evitar isso por meio de uma ilegítima intervenção estatal na liberdade de expressão é absolutamente inconstitucional. – lembrou o ministro Alexandre de Moraes em seu voto de relator contra a lei que proibia sátiras políticas no período pré-eleitoral.

O MUNDO NÃO PÁRA ESPERANDO ELEIÇÕES

A Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, também deu parecer no sentido de liberar a expressão dos humoristas durante o período pré-eleitoral lembrando que não há nenhuma justificativa plausível para tratamento diferenciado desta época de todas as outras da vida democrática.

Não é diferente o período eleitoral de qualquer outro período da vida nacional. O período eleitoral não é um período de exceção democrática, não é um espaço no cotidiano da democracia que exija regras diferenciadas para conter a liberdade de expressão no país – muito ao contrário. – argumentou Raquel Dodge.

A Procuradora-Geral da República salientou que exatamente no período em que estamos escolhendo nossos representantes é fundamental o livre debate de ideias, já que estamos traçando os destinos da nação no Executivo e Legislativo para os anos seguintes.

Uma das formas mais importantes de críticas existentes em qualquer país é a crítica que é despertada por meio do humor, da sátira, que revele empatias ou antipatias que por ideias, por modelos ou até por pessoas que estão sendo propostos à nação no período eleitoral. É exatamente nesse período que a reflexão – e a reflexão crítica – é mais necessária, exatamente porque estarão sendo eleitos aqueles que representarão a população brasileira por meio de um mandato de curto período. – disse a Procuradora-Geral da República em sua manifestação no plenário do STF.

Para o relator, a crítica não é um direito do cidadão brasileiro, é um dever. A lei que amordaçava os humoristas é um reflexo da forma paternalista que o legislador tem de tratar o cidadão brasileiro.

O cidadão tem o DEVER DE CRITICAR enquanto o agente público tem o dever de ADMINISTRAR. Essa restrição, lamentavelmente no Brasil isso é historicamente corriqueiro, é um tratamento extremamente paternalista, achar que as pessoas não podem ter acesso a todas as informações porque as pessoas não saberão balancear, não saberão elaborar seu pensamento crítico com relação a cada um dos assuntos. – disse o ministro Alexandre de Moraes em seu voto.

Foram necessários 21 anos para que uma manifestação UNÂNIME do Supremo Tribunal Federal ensinasse aos políticos brasileiros que eles não estão blindados contra os humoristas. As eleições de 2018 começam com um passo importantíssimo, colocando um ponto final na dúvida sobre a liberdade de expressão.

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