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Sabe todos os relatos de gente que “saiu do zero”? A maioria não é verdade
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Principalmente quem convive entre empreendedores ouve relatos que se pretendem comoventes de quem "saiu do zero" e fez uma grande empresa. Talvez o mito norte-americano do self-made-man seja um prato cheio para o marketing mas, colocando uma lupa, não é verídico e carrega uma mistura de ingratidão com vergonha do sucesso.

Muitas pessoas dizem que, no Brasil, é vergonha fazer sucesso e pior ainda ganhar muito dinheiro. Existe na nossa cultura uma glamurização da pobreza, sustentada principalmente pela classe intelectual, que levou o carnavalesco Joãosinho 30, em determinada ocasião a disparar: "Quem gosta de pobreza é intelectual, pobre gosta de luxo".

A sociedade que cultua apenas o consumo, como a nossa, só piora quando também coloca no caldeirão a mitificação da pobreza. A primeira vítima de tudo isso são os fatos e, se os desprezamos, não conseguimos avançar.

Muitos grandes empresários internacionais estão tratando de desfazer o mito de que suas empresas começaram sem nenhum respaldo, em pequenas garagens. Um deles é o bilionário Bill Gates, que consegue ser ícone no mercado de tecnologia pelo sucesso e, ao mesmo tempo, ícone de filantropia mundial.

É verdade que há diversos empreendimentos bem sucedidos de gente que começou no improviso mas, do zero mesmo, só conheço um caso: Geraldo Rufino, que tive a alegria de entrevistar diversas vezes, inclusive para a Gazeta do Povo. Ele catava latinha para ajudar a família a viver, morava em favela, perdeu a mãe aos 7 anos de idade e diversos amigos para caminhos errados e desesperados. Mas nem ele diz que veio do zero: o amor e a sabedoria que a mãe deixou de herança o mantiveram no prumo. Nem toda criança tem isso.

Muitos empreendedores já percebem o quanto é ridículo pregarem para os outros a necessidade de fazer o esforço que não fizeram e ter a resiliência que jamais lhes foi exigida. Óbvio que há casos raros em que o esforço individual vence todas as barreiras, mas são a absoluta exceção. A regra é aquela da música antiga de axé: "o de cima sobe e o de baixo desce". As histórias de empresas que começaram em garagens não trazem os complementos fundamentais do apoio da família que sustentava, cuidava da saúde, pagava estudo, dava suporte emocional e, inúmeras vezes, até a própria garagem. Precisamos ser gratos a todos que fizeram algo para que nós nascêssemos um degrau acima deles na escala de privilégios.

O mundo seria bem melhor se, em vez de ocultar ou ter vergonha dos próprios privilégios, as pessoas os reconhecessem e usassem para poder providenciar aos menos afortunados uma vida com menos barreiras. Há muitos que o fazem.

E é interessante notar que a retribuição não tem relação direta com o quanto de dinheiro ou tempo sobrando as pessoas têm: trata-se de um valor familiar. Uma pesquisa publicada recentemente pela Gazeta do Povo mostra que é o exemplo da família o maior motivador para que os jovens façam caridade.

Todos temos nossas dificuldades, nossas dores, nossos sonhos não realizados e a tendência é que eles nos mobilizem mais do que o reconhecimento e gratidão por tudo aquilo que tivemos a felicidade de receber da vida. Num artigo escrito semana passada, Bill Gates utiliza dados das "camadas de desigualdade", analisadas pela ONU, para mostrar que ele e a esposa enfrentam menos dificuldades, por exemplo, do que uma menina nascida na área africana do Sahel.

O pulo do gato é sair desse clima de culpa e acusação para o clima de retribuição. O fato de ter nascido numa boa família norte-americana, que não deixou faltar comida, educação e apoio, não pode ser usado para minimizar a genialidade tecnológica e as fantásticas conquistas empresariais de Bill Gates. Porém, ao reconhecer que partiu de um patamar mais alto, ele pode também se dedicar a achar soluções para que pessoas enfrentem as dificuldades que ele não teve de enfrentar.

Quem não consegue reconhecer os privilégios que teve talvez nem tome consciência dos problemas enfrentados diariamente e cumulativamente pela maioria das pessoas. Pode ser que perca, por falta de conhecimento, a oportunidade de apresentar soluções inovadoras para esses problemas. Olhar para o outro e abraçar a realidade é uma das formas mais interessantes de conhecimento e desenvolvimento pessoal.

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