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Os urubus que fingem ser vítimas de grandes tragédias
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Tragédias como a de Brumadinho escancaram o pior do ser humano. Cheguei a pensar que essa parte era a dos profissionais qualificados que conscientemente puseram em risco a vida de centenas de pessoas porque, entre o certo e o conveniente, resolveram optar pela conveniência pessoal ao preço de mortes. Veio agora mais uma leva, a dos que tentam se passar por vítimas da tragédia.

Talvez porque a nossa sociedade seja complacente com a mentira a ponto de sufragar autoridades cujos discursos destoam da própria biografia, as falsas vítimas de Brumadinho não tenham causado furor na população.

O que é mais desrespeitoso para a dor humana e coletiva de um assassinato em massa que poderia ter sido evitado – não fosse por dinheiro, prestígio e poder – do que alguém mimetizar a dor das famílias enlutadas para receber indenizações a que elas têm direito ou, em casos mais doentios, para receber a mesma atenção e carinho de pessoas solidárias?

O caso mais famoso é o de uma ex-candidata a deputada distrital pelo MDB e que agora é filiada ao PR, Ana Maria Vieira Santiago, que está presa e só sai se devolver os R$ 65 mil de indenização que conseguiu receber da Vale.

Obviamente é pelo fato de ter se candidatado, apesar de ter recebido pouco mais de 200 votos, que ela ganha as manchetes sozinha, como se fosse a única pessoa a ter esse desvio perturbador de conduta. E ficamos nos perguntando o que ela teria de tão especial para ludibriar uma empresa que provocou centena de mortes justamente porque ludibriou as autoridades com laudos de segurança. A resposta tem uma palavra: cúmplices.

O caso é ainda mais inquietante do que a tradicional história da vida de golpista, tão famosa na literatura e no cinema. Ana Maria tem vários outros processos judiciais por ter se envolvido em golpes com vendas de imóveis e carros, mas é o primeiro em que se meteu num caso que causou comoção nacional.

Ela alegou que tinha um imóvel na região do Parque das Cachoeiras, uma das mais afetadas pelo rompimento da barragem, fez a inscrição na lista de vítimas e recebeu a indenização. Só que Ana Maria morava em Anápolis e nunca havia pisado em Brumadinho antes. Como conseguiu comprovar? Testemunhas. Convenceu moradores da cidade devastada a atestar que ela morava lá e vivia de pecuária. São 3 pessoas, todas indiciadas por falsidade ideológica.

A indenização foi paga porque tudo estava sendo feito de maneira emergencial e contando com a boa-fé de quem se apresentava como vítima. Mas, quando as formalidades começaram a ser feitas, foi necessário colocar a Polícia Civil de Minas Gerais em cima da lista de vítimas porque as mais variadas aberrações começaram a aparecer.

17 nomes já foram retirados da lista de desaparecidos em Brumadinho. 11 haviam sido incluídos por erro, estavam duplicados ou tinham erro de grafia. Mas 6 deles eram golpes.

Há um caso bizarro de dois irmãos que acabaram presos porque um deles tentou receber a indenização de R$ 100 mil por ter um parente morto na tragédia. O homem foi até Brumadinho, disse que o irmão havia sumido após o rompimento da barragem e chegou a ter o próprio DNA coletado para identificação da vítima.

Efetivamente acharam o irmão dele, só que bem vivo e trabalhando como vendedor ambulante na cidade de Praia Grande, litoral de São Paulo. Aliás, as autoridades ficaram bem felizes coma  informação porque o cidadão tinha um mandado de prisão por assassinato aberto na Justiça de Santa Catarina, que agora foi cumprido.

Outro exemplo é o caso da mulher que não está presa, mas já foi processada por estelionato. Ela foi de São Paulo a Minas e incluiu o irmão na lista de desaparecidos reivindicando os R$ 100 mil de indenização. Também acharam o irmão dela – e morto. Só que estava muito bem morto desde 2010, muito antes do rompimento da barragem.

Todos os estelionatários que fingiram ter perdido bens ou ser parentes de vítimas do rompimento da barragem em Brumadinho são de fora de Minas Gerais e foram até a cidade custeados pela Vale. Isso mesmo: conseguiram que a empresa pagasse a eles voos, estada em hotéis e subsistência, ou seja, que “patrocinasse” os golpes.

Antes que você comece a pensar que “só no Brasil acontece esse tipo de coisa”, vou relembrar o caso Tania Head, a representante das vítimas do World Trade Center.

Alicia Esteve Head passou a ser a representante de todos os 20 mil sobreviventes do atentado terrorista e conseguiu manter a história que contava durante 6 anos até que jornalistas dos Estados Unidos, Espanha e Inglaterra desvendaram a farsa. É por essas e outras que farsantes são tão agressivos com a imprensa profissional, como ela própria chegou a ser quando seu castelo de cartas ruiu.

A espanhola dizia que estava no 78o andar da Torre 2 quando o avião bateu abaixo do andar onde ela estava, o que fazia dela uma das 19 pessoas que sobreviveram estando acima do ponto de impacto dos aviões nos prédios. Também chorava a morte do noivo, Dave, que teria morrido na Torre 1. Também entregou a uma viúva um anel de casamento que dizia ter recebido de um homem que estava morrendo.

Tania Head discursou em dezenas de universidades e grupos de apoio contanto sua história durante 6 anos. Encontrou-se no Ground Zero com prefeitos e governadores de Nova Iorque em todas as cerimônias em memória das vítimas, nas quais quase sempre discursava e invariavelmente tinha grande destaque.

A mentira começou a tombar porque o New York Times, após 6 anos da consolidação de uma personagem pública apoiada pelo país, desconfiou do relacionamento de Tania Head com o tal Dave. Num primeiro momento, a imprensa obviamente foi execrada. Depois, foi revelado que Dave nunca existiu e Tania nem estava nos Estados Unidos no 11 de setembro, estava na sala de aula em um curso de administração em Barcelona.

Aliás, ela não era formada em Harvard e Stanford como costumava alardear e nunca foi funcionária da Merryl Lynch, onde dizia estar trabalhando assim que sua vida foi atravessada pelo atentado. Ela não surgiu imediatamente após o acidente. Tania Head pisou pela primeira vez nos Estados Unidos dois anos depois, em 2003 e paulatinamente foi ganhando espaço e destaque na associação de vítimas.

Como alguém consegue sustentar uma mentira dessas durante tanto tempo? Sedução e cumplicidade. A parte escura da humanidade que vive da mentira também vive da sedução, há mentiras muito melhores que os fatos. Além disso, quem sabe a verdade, muitas vezes cala por conveniência.

Há dois documentários interessantíssimos com imagens reais do caso e os momentos de confronto de Tania Head com a verdade, vale muito assistir. O primeiro é de 2012 e está na Netflix: “The Woman Who Wasn’t There”. O outro, feito para o Channel 4 do Reino Unido, está disponível no YouTube mas sem tradução em português: “The 9/11 Faker”. Ambos nos deixam com a pulga atrás da orelha ao nos confrontar com a mentira escancarada que tem jeito e cara de verdade.

Termino com meu conselho que virou um mantra: chequem as biografias. Discurso aceita tudo, de choro de vítima a promessas políticas, de luta pela liberdade a defesa dos injustiçados, mas biografia só aceita atos e fatos. Da boca para fora, qualquer pessoa pode simular até mesmo viver a dor das famílias de Brumadinho quando, na verdade, não passa de um reles golpista. A quantos deles temos dado palanque ultimamente? Está na hora de virar o disco.

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