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‘Era uma vez um sonho’, com Glenn Close e Amy Adams.
‘Era uma vez um sonho’, com Glenn Close e Amy Adams.| Foto: Divulgação

Não sou particularmente fã de Ron Howard (alguém é?). Mesmo seus filmes mais aclamados e premiados, como Apolo 13 e Uma Mente Brilhante, não chegam a ser inovadores ou surpreendentes a ponto de merecem um lugar no Hall da Fama do cinema. Alguns são equívocos constrangedores, como O Código da Vinci ou Han Solo. Os que gosto, como Frost/Nixon e EdTV, pouca gente lembra ou liga.

Howard venceu na profissão, mas não fez história. Ache o que quiser dele, é aparentemente um sujeito de bom trato, tímido e nada deslumbrado, avesso a polêmicas e, apesar de ideologicamente alinhado com Hollywood, não tem o ativismo político como foco. É um contador de histórias com acertos e erros e um compromisso genuíno com sua arte.

O pacato e afável Howard é a mais nova vítima da cultura do cancelamento, uma espécie de “fascismo do bem” que patrulha, persegue e exige uma conformidade política de tudo e de todos. Ele ousou contar em Hillbilly Elegy (“Era uma vez um sonho” no Brasil), filme baseado no best-seller autobiográfico de J. D. Vance, os conflitos e dramas reais de três gerações de uma família pobre da região dos Apalaches, uma das mais atingidas pela rápida desindustrialização da América nas últimas décadas. O termo “apalachiano” é considerado nada lisonjeiro para os americanos do cinturão da ferrugem.

Assim como J. K. Rowling, a mãe de Harry Potter, Howard descobriu da pior maneira que a conformidade tácita com os totalitários do seu próprio lado ideológico já não é mais garantia de ser preservado ou poupado de ataques. É preciso ter lado, ser panfletário e abraçar todas as bandeiras, causas e narrativas da extrema-esquerda identitária para sobreviver num ambiente cultural cada vez mais intolerante das elites costeiras ditas progressistas.

O curioso da controvérsia sobre Hillbilly Elegy é que o filme não é nada mais que um passatempo, com uma mensagem tipicamente americana de superação das piores circunstâncias a partir de boas escolhas, trabalho duro e responsabilidade individual, e que dificilmente causaria qualquer polêmica há dez anos ou mais. No atual clima político e cultural radicalizado da América, não existe mais neutralidade e qualquer menção ao “sonho americano” é tratado como “racismo”, o xingamento oficial dos sinalizadores de virtude.

O contexto social que envolve a trama, muito presente no livro que deu origem ao filme, foi quase soterrado por Howard. Ele tinha a ilusão de despolitizar a obra e focar apenas no drama familiar de J. D. Vance e nas atuações memoráveis de Glenn Close e Amy Adams, e sua reação estupefata com os ataques que sofreu de críticos e de seus pares pareceu legítima.

Aos 66 anos, Howard foi forçado a entender que sua geração de progressistas, autoproclamada “liberal”, já é considerada inaceitável pelos novos jacobinos da imprensa, da política e das elites costeiras. Hillbilly Elegy seria até a década passada apenas mais um “Oscar bait”, um típico filme produzido com a intenção de conquistar estatuetas, e hoje é capaz de não apenas ser esnobado na premiação como gerar problemas sérios para a carreira de Howard.

Hillbilly Elegy, uma produção da Netflix, cometeu o grave crime político de ter um olhar condescendente e compreensivo para o drama vivido pelos brancos “apalachianos”, os tais caipiras do meio-oeste, uma ofensa às narrativas que repetem que basta ter a pele clara para ser um privilegiado opressor e só negros podem sofrer ou serem pobres no país e nas telas.

O livro de J D Vance, que vendeu mais de três milhões de cópias e serviu quase como um estudo antropológico sobre os eleitores de Trump em 2016, resume o abismo social, cultural e político entre as “duas Américas” que estão cada vez mais distantes e desconfiadas uma da outra, a ponto de fazer com que as elites costeiras, hegemônicas nos meios de comunicação e na cultura, sequer permitam que outra parte do país, encrustada em seu coração, seja entendida e, no limite, ajudada.

Para os novos totalitários, os brancos dragados por sucessivas recessões e a fuga de oportunidades e empregos de suas regiões, são para as elites costeiras apenas perdedores da globalização, dinossauros de uma América racista e branca que deveria apenas desaparecer. O uso de drogas, a desesperança, os suicídios e o ostracismo social destas pessoas não deveria ser compreendido, pelo contrário, a decadência da América rural deve ser comemorada e até acelerada. Entender estas pessoas é respeitar seus desafios, muitos deles estruturais, enquanto deveriam apenas caminhar para a extinção.

Há um motivo claro para que o que menos se fale sobre Hillbilly Elegy é sobre o filme em si, que deve ser visto mas está longe de ser extraordinário, como quase tudo que Howard fez na vida. A família de J. D. Vance, vítima direta da exportação dos empregos de “colarinho azul” e das fábricas do meio-oeste, é um retrato de uma América conservadora e patriota que ainda luta para sobreviver. O sucesso de um de seus filhos, que superou as dificuldades e hoje é um bem sucedido investidor, escritor e advogado, é simplesmente inaceitável.

O coração da América não vai se entregar sem luta e Hillbilly Elegy é uma prova de que há uma batalha de vida ou morte pela própria sobrevivência. Uma guerra que, apesar da derrota de Donald Trump, promete batalhas ainda mais violentas nos próximos anos.

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