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Capacidades institucionais: por que é inadequado que o MP tente gerir a pandemia
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Toda vez que, no decorrer da pandemia, o Ministério Público buscou extravasar suas funções e assumir, propriamente, a gestão da crise sanitária, ele efetuou um trabalho para o qual seus membros não possuem a qualificação nem a legitimidade necessárias. O mesmo, aliás, vale para o Poder Judiciário. Mas nesse artigo gostaria de focar na instituição ministerial.

Vejamos alguns poucos exemplos dentre outros que poderiam ser mencionados. Durante as primeiras ondas de COVID, setores do MP tentaram compelir governos a adotarem medidas de lockdown. Recentemente, contudo, estudo da Universidade John Hopkins, resultado de meta-análise de dezenas de trabalhos anteriores, concluiu que “os lockdowns tiveram pouco ou nenhum efeito na mortalidade por Covid-19”. Por outro lado, como bem salienta o jornalista Brad Polumbo, “os custos dessas medidas draconianas não foram mínimos. Elas devastaram a economia, agrediram a classe trabalhadora, alimentaram uma crise de saúde mental juvenil, levaram a overdoses recordes de drogas, pioraram uma onda de crimes, atrasaram tratamentos médicos que salvam vidas e muito mais.” Frise-se que o trabalho da John Hopkins veio na esteira de outras pesquisas em idêntico sentido.

Outro caso: em 2021, o MP recomendou a manutenção do fechamento de escolas em alguns estados. A medida, no entanto, despida de grande eficácia sanitária, contribuiu para uma pandemia de analfabetismo entre crianças, cujo impacto mais severo ocorre entre infantes de grupos socialmente vulneráveis. Mesmo jornais outrora entusiastas de tais políticas, qualificaram-nas recentemente como um crime.

Ausência de capacidades institucionais

A razão por que o Ministério Público incorreu nos mesmos equívocos que o senso comum é simples: juristas não possuem a expertise necessária para fazer a gestão de políticas públicas. Muito menos para impor suas preferências sobre a decisão dos gestores de direito.

O tipo de conhecimento e habilidades necessárias para obter uma boa formação jurídica e lograr êxito na aprovação de concursos públicos não habilita pessoas a escolherem entre as várias alternativas em termos de políticas públicas para fazer frente a um dado problema social. Faltam-lhes duas coisas: conhecimento técnico para as diversas áreas envolvidas na gestão da coisa pública (educação, saúde, segurança, economia etc.); e, legitimidade.

A ausência de legitimidade é mais simples de ser compreendida: ocupantes de cargos vitalícios não são eleitos tampouco respondem politicamente em eleições periódicas, de modo que lhes falece autoridade para realizar opções entre políticas alternativas quando há desacordo legítimo, seja ele moral ou técnico. Esse tema, que sempre esteve presente no debate acerca da participação de órgãos não eleitos nas decisões coletivas, ganhou novo influxo com a obra de grandes teóricos como Jeremy Waldron nos Estados Unidos e Richard Bellamy na Inglaterra.

Creio que esse é um ponto mais intuitivo e já bastante explorado, de modo que não pretendo me deter nele. Quero aqui tentar contribuir com dados acerca das limitações técnicas dos membros de órgãos jurídicos para fazer escolhas dessa natureza.

Com efeito, juristas não possuem a formação técnica necessária nos vários ramos do conhecimento envolvidos na arte de governar. Embora, sejam capazes de buscar autoinstrução, com leitura e exame de artigos da área em que buscam atuar, isso é absolutamente insuficiente para que se coloquem acima dos especialistas de cada um dos lados da divergência, acreditando-se capazes de atuarem como “árbitros” de questões que envolvem complexidade científica.

Pelo contrário, estudos mostram que, em geral, estão bem aquém nessa tarefa. De fato, a compreensão e manejo de evidências empíricas e provas de relações de causalidade nos mais diferentes campos do conhecimento ultrapassam, em regra, o domínio dos operadores do direito. Nesse sentido, em seu livro sobre capacidades institucionais comparadas entre órgãos do sistema de justiça e de governo, o Prof. de Direito Constitucional Comparado de Oxford, Paul Yowell, indica uma série de dificuldades que juristas encontram, em regra, para trabalhar com pesquisas que tratam de dados empíricos, bem como indícios de deficiência na sua formação para lidar com informações complexas dos vários ramos das ciências (nesse sentido, vide o item V no capítulo 4 do livro Constitutional Rights and Constitutional Design).

No mesmo sentido, o próprio Ronald Dworkin - um dos maios importantes teóricos do direito contemporâneo e usualmente citado por quem defende um papel mais ativista do órgãos jurídicos -, embora defendesse uma ampla litigância constitucional baseada em princípios, em seu artigo Social Sciences and Constitutional Rights, aborda as dificuldades e os problemas da utilização na decisão de questões constitucionais de dados empíricos acerca de controvérsias típicas das ciências sociais: “Julgamentos causais controversos baseados na teoria estatística estão fora da competência normal dos tribunais”, afirmava.

Inclusive, quanto ao exame de material científico no bojo de processos jurídicos, alguns levantamentos apontam para o uso de pesquisas de baixa qualidade e confiabilidade. Isso ocorre principalmente quando sua utilização se dá pela busca direta dos juristas por meio da rede mundial de computadores. Nesses casos, em geral, ainda que o operador do direito possa simplesmente localizar, baixar, ler e compreender um artigo científico, é-lhe muito difícil mensurar o grau de autoridade daquela fonte dentro de seu campo científico, assim como comparar o nível de credibilidade de artigos que sustentam posições opostas. Com efeito, uma investigação dessa espécie exige altíssimo grau de expertise e especialização na matéria objeto da controvérsia (Vide o item IV no capítulo 4 também na já mencionada obra: YOWELL, Paul. Constitutional Rights and Constitutional Design).

Na mesma linha, em interessante estudo, o pesquisador e professor David H. Kaye - um dos responsáveis pela elaboração de manual sobre evidências científicas utilizado pela Justiça Federal estadunidense (Reference Manual on Scientific Evidence) - identificou inúmeros erros no uso de estatísticas em tribunais de todas as instâncias nos Estados Unidos, inclusive na Suprema Corte (cf. KAYE, David H. Is Proof of Statistical Significance Relevant? Washington Law Review, vol. 61, 1986, p. 1333).

Muito provavelmente, caso uma pesquisa dessa espécie fosse feita no Brasil, encontraria um cenário ainda mais negativo. Só para citar um exemplo: texto recente publicado na Gazeta do Povo, o qual examinou decisões do STF sobre vacinação registra que verificou mais citações de matérias de portais de notícia como G1 e periódicos como Folha de SP, do que material e fontes científicas de alta qualidade.

Qual o problema de o Ministério Público simplesmente assumir um dos lados e militar em favor dele?

Alguém poderia perguntar se, havendo controvérsia, não seria natural que órgãos de Estado como o Ministério Público simplesmente assumissem um “lado” do debate e militassem em favor dele.

A meu ver, existem inúmeros inconvenientes nessa postura e o resultado deles é a deterioração das próprias estruturas democráticas.

Primeiramente, quando o MP atua desse modo ele é automaticamente tragado para o interior do ambiente polarizado do debate político-partidário, o que inevitavelmente corrói a credibilidade do órgão, sua vocação para atuar de modo politicamente independente e a autoridade de suas manifestações. Isso porque elas passam a ser vistas como opiniões pessoais e não como indicativos técnicos do que exige a legalidade.

Em segundo lugar, a reação natural da população contrária à posição ideológica defendida é atacar a própria instituição. Isso é absolutamente inevitável. Quando grupos sociais amplos percebem que o Ministério Público é capaz não só de aplicar os preceitos do direito democraticamente instituído, mas de manipular previsões abstratas nas fontes do direito para reforçar um dos lados da arena ideológica ou partidária, a reação inexorável, ao saber que seus membros gozam de vitaliciedade e portanto não sofrem accountibility política perante a população, é de algum modo buscar reduzir a própria autoridade da instituição, a fim de tentar resgatar o equilíbrio entre as partes do debate social.

Em terceiro lugar, essa escolha do Ministério Público sofre de um óbvio déficit democrático, uma vez que ela é tomada fora de um cenário deliberativo em que o pluralismo social esteja suficientemente representado. Esse fenômeno é ainda mais preocupante quando as políticas públicas atingem o núcleo essencial de direitos fundamentais e incomensuráveis.

Por derradeiro, a história demonstra que uma vez que instituições desenhadas para atuarem de modo técnico (no caso, segundo a técnica jurídica) demonstram disposição e meios para desestabilizar a balança dos debates políticos, isso gera o imediato incentivo para que as forças partidárias busquem “sequestrar” o órgão. E a cooptação de órgãos independentes é um dos elementos do processo de erosão das democracias constitucionais.

Quanto a esse ponto, em artigo que trata de espécies de falhas de processo político, o prof. da Universidade da Califórnia Stephen Garbaum aponta que um deles ocorre exatamente quando grupos políticos “miram e capturam instituições projetadas para serem independentes do controle político (…), como tribunais, promotores e comissões”. Ele indica como essa espécie de captura tende a reduzir o nível de accountibility horizontal do grupo que obtém sucesso na cooptação e como isso tende a consolidar poder em suas mãos, o que “mina a estrutura constitucional da democracia representativa”. Segundo ele, “o novo e corrompido processo político resultante é qualitativamente diferente e muito menos ‘confiável’ do que um baseado em uma maior dispersão de poder e instituições mais robustas de prestação de contas.”

Ele faz uma interessante comparação com o mercado: se a democracia é um mercado de vários players buscando ampliar sua autoridade política por meio da obtenção de apoio (uma espécie de conquista de mercado pela adesão de clientes), a captura de instituições independentes funciona como a implementação de um monopólio de poder pela manipulação das ações do órgão antitruste.

Aliás, não é de todo descabido ver um "colorido partidário" nos tipos de políticas públicas que foram incentivadas ou impostas durante a pandemia por órgãos que deveriam ser independentes. Deixo, todavia, para o leitor julgar se esse processo de captura já existe ou não no Brasil e em que medida.

Qual o papel do Ministério Público?

O papel do Ministério Público, assim como do sistema de justiça em geral, em face de crises pode-se resumir a dois tipos de ação:

  1. fiscalizar o cumprimento da Constituição e das leis; e,
  2. preservar aquilo que alguns autores chamam de cultura de justificação.

Nesse último caso, basicamente, quando os atores da Administração Pública tomam medidas que não decorrem diretamente de regras razoavelmente claras, havendo margem significativa de escolha (o que o jargão jurídica chama de mérito administrativo ou legislativo), pode caber ao MP verificar se existem razões públicas para o ato tomado. Aqui também se enquadraria uma possível função de indução, consultando se há razões para deixar de adotar uma determinada política pública.

Cabe ainda reconhecer que o “cumprimento da Constituição” hoje se tornou algo cujo conteúdo envolve certa complexidade, em virtude dos princípios abertos nela contidos. De todo modo, podemos asseverar com suficiente grau de certeza que dar cumprimento à Constituição não implica na tentativa de imposição e constrangimento de gestores para empregarem determinada política pública quando existe controvérsia técnico-científica ou moral a respeito da melhor alternativa e a Constituição não elegeu claramente uma das possibilidades.

Fundamentalmente, é exatamente isso o que ocorre no tocante ao enfrentamento da pandemia, cuja eficácia e efeitos adversos das políticas passíveis de serem adotadas, além de incertos em razão da novidade e ineditismo do cenário (particularmente nos primeiros meses de difusão da doença), envolvem opção entre bens incomensuráveis, como benefícios à saúde pública, e eventuais custos a valores como saúde individual (mental e física), liberdade responsável, direito ao trabalho, renda mínima, estudo, vida social e familiar etc. Todos esses bens são potencialmente atingidos pelas políticas que têm sido discutidas no atual momento de crise. Optar entre eles e em que medida não é uma tarefa meramente técnica ou de simples “aplicação da Constituição”, ainda que por vezes órgãos mascarem a tentativa de impor preferências subjetivas, adotando esse tipo de retórica.

O novo erro do Ministério Público: tentar instituir a obrigatoriedade da vacinação infantil

Embora em vários lugares, o MP tenha atuado exemplarmente, algumas regiões registraram nova investida indevida, no sentido de buscar instituir a obrigatoriedade da vacinação infantil contra a COVID por meio de recomendações.

Inobstante sejamos entusiastas da vacinação, a atitude do órgão nesse caso viola a legislação, e almeja impor medida cientificamente controversa e politicamente ainda mais duvidosa, particularmente no tocante ao público infantil. Esclareço que não trato aqui da vacinação em si, mas de sua compulsoriedade. Mas esse será o tema do nosso artigo da semana que vem.

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