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STJ
Sede do STJ, em Brasília,| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Na manhã do dia 19 de dezembro de 2021, próximo ao feriado do Natal, dois traficantes foram flagrados transportando 311 quilos de cocaína em Goiás. O carregamento estava sendo efetuado em um veículo pesado, especificamente em reboque puxado por caminhão-trator. Havia duas pessoas no automóvel, o motorista e um passageiro.

Ao avistarem a polícia, o motorista havia mudado de faixa de forma brusca, chamando a atenção da polícia que resolveu abordar o automóvel. Diante do nervosismo aparente ao responder a pergunta dos policiais, a equipe da Polícia Rodoviária Federal resolveu fazer verificações mais profundas no veículo, quando encontrou 305 tabletes de cocaína, na forma de pasta base, cada um com pouco mais de 1 quilo, em média. A droga estava oculta no interior do reboque.

Durante a lavratura do flagrante, foi descoberto que o passageiro era o pai do motorista. Eles alegaram que o genitor era o responsável e o único a saber da carga (esse fato inclusive resultou na soltura precoce do filho).

Ao receber notícia do flagrante, o Ministério Público requereu que a prisão fosse convertida em prisão preventiva.

Aqui é importante ressaltar: a prisão em flagrante serve apenas para custódia de alguém apanhado durante a prática do delito até que a justiça competente analise a questão e verifique se é o caso de decretar a prisão preventiva ou restabelecer a liberdade, com ou sem a imposição das restrições previstas no art. 319 do Código de Processo Penal (como monitoramento eletrônico por meio de tornozeleira eletrônica ou recolhimento de fiança, por exemplo).

Outro esclarecimento: a prisão preventiva não é uma antecipação da condenação. A aplicação da pena só é cabível após a submissão da pessoa ao devido processo legal. A prisão preventiva é uma cautelar, ou seja, ela serve para proteger durante a investigação e o processo algum dos bens jurídicos previsto no art. 312 do Código de Processo Penal: a ordem pública ou a ordem econômica, a aplicação da lei penal (prevenindo fuga, por exemplo), ou a instrução processual (p. ex.: evitando a destruição de provas ou a intimidação de testemunhas).

Aqui o que nos interessa mais é a ordem pública, pois é este fundamento que acreditamos que legitimava a prisão preventiva no caso concreto. Com efeito, são dois os casos mais comuns de uso dessa cláusula para fundamentar a prisão preventiva: quando há risco de reiteração delitiva, diante de elementos concretos que demonstrem que o flagrado pratica delitos habitualmente; ou particular gravidade in concreto do delito. Perceba que nesse último caso não basta que o delito seja grave abstratamente (p. ex.: todo homicídio é grave), mas que as circunstâncias do caso particular revelem singular gravidade.

A meu ver, esse foi o mais importante argumento do juiz para decretar a prisão preventiva: tendo em vista a natureza e quantidade da droga (311 kg de cocaína em forma de pasta base), bem como as circunstâncias do delito (transporte oculto em veículo pesado), ficou demonstrado que se tratava de um delito de narcotráfico de particular gravidade.

Após a expedição do decreto prisional, o motorista e filho do corréu livrou-se solto, uma vez que inexistia prova de igual força de seu conhecimento do carregamento, ante a versão apresentada por ocasião do flagrante.

Contra a ordem prisional remanescente, o outro flagrado (pai) impetrou habeas corpus perante o Tribunal de Justiça local, o qual foi corretamente rejeitado. Segundo o órgão judicial de segunda instância:

“Não há ilegalidade a ser reparada pela via do remédio heroico quando as circunstâncias fáticas recomendarem a manutenção da custódia cautelar do paciente para a garantia da ordem pública”.

Contudo, ao chegar ao STJ, a sociedade viu-se surpreendia com decisão equivocada que, em junho deste ano, determinou a soltura do traficante. Segundo argumentou o STJ:

“ao analisar as circunstâncias do caso, verifica-se que o decreto prisional está fundamentado exclusivamente na quantidade de droga, elementar do tipo penal, sem demonstrar de maneira objetiva outras circunstâncias que indiquem que o paciente se dedica a atividades criminosas. Sendo assim, não se verifica nenhum elemento no caso concreto que justifique a prisão, o que evidencia a ausência de fundamentos para o decreto prisional.”

O Ministério Público, corretamente, recorreu da decisão, chamando a atenção para o fato de que a natureza da droga (cocaína) e sua quantidade (311 kg) justificariam o decreto de prisão preventiva.

Repetindo o argumento anterior, de modo extremamente breve, a decisão arguiu: “Como se vê, a decisão agravada considerou que a prisão preventiva baseada tão somente na quantidade de droga apreendida (311 kg de cocaína), elementar do tipo penal, não é suficiente para ensejar a segregação cautelar, se não houver a demonstração objetiva de que o paciente, primário, se dedique à prática criminosa.”

A decisão do STJ está equivocada. Alguns dados podem ajudar nessa análise.

É necessário adentrar no exame do quão vultosa era a carga, e o que se pode extrair desse dado.

O primeiro elemento importante de ser ressaltado é o valor envolvido. Segundo reportagens da imprensa na época, o quilo da cocaína na forma de pasta base custa em média R$ 125 mil reais. Ou seja, a carga de 311 kg alcançava o montante de mais de 38 milhões de reais.

Ainda é importante examinar a dimensão do estupefaciente capaz de ser produzido com ela: cada quilo de cocaína de pasta base serve para elaboração de cerca de 3 kg da droga no formato “sal”, próprio para uso. Por conseguinte, o carregamento era suficiente para preparação de quase uma tonelada do entorpecente.

Para se ter ideia do que isso representa, segundo estudo sistemático do MP do Paraná, países como Portugal e Alemanha usam como parâmetro médio de consumo diário de cocaína a quantidade de 0,2g. Por essa razão, apreensões acima de 2g, o suficiente para dez dias de consumo, são enquadradas como tráfico. Esse também é o parâmetro sugerido pela SENAD – Secretaria Nacional Antidrogas do Ministério da Justiça.

Percebe-se disso que a carga apreendida seria o suficiente para o preparo de mais de 1 bilhão e meio de doses diárias médias de cocaína. O bastante para um usuário utilizar o entorpecente por mais de 4 milhões de anos de modo contínuo. Se nos valermos do parâmetro técnico acima, considerando portanto que um usuário adquire o suficiente para até 10 dias de uso, ou 2g, a carga apreendida seria o bastante para alimentar um mercado de mais de 426 mil usuários.

Ora, utilizando a regra da experiência, o que é autorizado pelo art. 3º do CPP combinado com o art. 335 do novo CPC, podemos concluir que a capacidade financeira requerida para conduta dessa espécie exige o envolvimento de organização criminosa. Até mesmo porque a quantidade de droga apreendida é de tal grandeza que ela demanda a existência de uma rede prévia de contatos e um mercado de consumo amplo e bem estabelecido para viabilizar a vazão do produto.

Mais: agentes iniciantes na vida criminosa não têm, em regra, acesso a cargas desse vulto e valor. É necessário gozar de certa confiança da organização e acesso a agentes de razoável hierarquia para ser contratado para transporte dessa magnitude.

Todos esses fenômenos, a princípio, são incompatíveis com a figura de um agente iniciante em práticas criminosas de narcotraficância.

A regra de experiência pode ser excepcionada por prova concreta em contrário, mas no caso prova alguma foi produzida por parte da defesa. O tribunal simplesmente aceitou como verossímil a alegação de que o flagrado, sem qualquer envolvimento criminoso pretérito, teria sido surpreendentemente incumbido da tarefa de transportar milhões de reais de uma quantidade de droga capaz de alimentar vasto mercado consumidor.

Ante esses dados, parece claro que a natureza e quantidade da droga supera em muito o que seria simples elementar do tipo penal. Trata-se, segundo comprovam as circunstâncias concretas, de prática delitiva de extrema gravidade. Quando a gravidade concreta é de tamanha magnitude, isso por si só recomenda a imposição de prisão preventiva.

Ademais, como mencionado acima, os elementos específicos descritos, não permitem a conclusão de que se trata de pessoa alheia a práticas criminosas. Isso porque agentes sem contato prévio com a criminalidade não são de repente surpreendidos com o convite para transportar milhões de reais de uma carga capaz de produzir quase uma tonelada de cocaína.

Frise-se que ainda que alguns magistrados possam ter opinião favorável à legalização das drogas, é necessário que respeitem a política pública estabelecida pela legislação e primem por seu cumprimento enquanto não for alterada. Parece lógico que a leniência com o tráfico de tamanha quantidade de droga prejudica a política estabelecida.

O episódio parece demonstrar como é necessário que no Brasil combatamos uma arraigada cultura de brandura com práticas criminosas que ofendem gravemente a legislação estabelecida. É também preciso avançar no desenvolvimento de teorias de análise probatória mais realistas, técnicas e razoáveis. Por fim, urge proclamar pelo respeito às políticas públicas estabelecidas pelo legislador.

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