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ministro do Supremo
| Foto: Antonio Augusto/TSE

Em artigo publicado na Folha de São Paulo em 23 de fevereiro de 2018, o ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal, num exemplo de automistificação, defendeu papel “iluminista” do STF e afirmou que, às vezes, é dever daquele tribunal “empurrar a história”. O ministro já fez a mesma afirmação em outras oportunidades.

Pesquisas de opinião indicam que a população não comunga de uma imagem tão gloriosa do Tribunal. Mas aqui não quero me deter em pesquisas de opinião. Meu intento é outro: averiguar o quão iluminista foi o ministro em algumas das discussões que se travaram no ano passado no Brasil e em que ele participou ativamente.

Segundo Barroso, no último ano foi gasta “imensa energia” nos debates sobre a adoção ou não do comprovante impresso do voto. Pois bem. Já de início, é curioso que a Justiça Eleitoral veja o combate à adoção de uma tecnologia mais moderna e experimentada em outros países como algo tão crucial e lhe destine tantas energias. E para além do surpreendente nível de esforço empreendido durante o episódio, a postura de Barroso e de setores da administração eleitoral foi tudo menos ilustrada.

Em primeiro lugar, pela própria posição defendida. A luta ali travada foi para empurrar a história para trás. Mais precisamente, para a “futurista” década de 90 do século passado, quando foram criadas as urnas eletrônicas de primeira geração que o Brasil ainda usa.

O iluminismo tecnológico que Barroso defendeu com unhas e dentes vigora apenas em nações que não são necessariamente exemplos de ilustração, como Butão e Bangladesh, os únicos quesegundo levantamento do jornal Folha da São Paulo, completamente insuspeito de apoio ao governo federal – nos acompanham e “adotam a votação por urna eletrônica sem registro em papel em larga escala em eleições nacionais”. Conforme a matéria do jornal, “a maioria dos países que usa urnas eletrônicas adota a segunda geração dessas máquinas, que imprimem um comprovante em papel (o tal voto impresso), enquanto o Brasil ainda utiliza as de primeira geração”.

A tecnologia usada no Brasil - e que qualquer um acreditaria beirar a perfeição ao ver Barroso falar dela - já foi inclusive considerada inconstitucional em democracias bastante consolidadas como a Alemanha.

Mas além do mérito da questão, a forma como Barroso e setores da Justiça Eleitoral participaram do debate foi, a meu ver, ainda mais condenável. De fato, pessoalmente discordo da manutenção do sistema de urnas atual. Já escrevi ao menos dois artigos expondo as razões por que advogo pela atualização e modernização de nossas urnas para um sistema de geração mais recente, que imprima o comprovante do voto. Adianto que minha posição não está baseada na crença de que exista uma imensa conspiração e de que nossas eleições são apenas jogos de cartas marcadas. Contudo, creio que nosso sistema é falho, ultrapassado e pouco transparente, e já existe tecnologia disponível e testada com sucesso em outros países para melhorá-lo.

Aliás, espero que o Congresso Nacional retome tão breve quanto possível a discussão. Não é possível que por irracionalidade e ativismo judicial o Brasil mantenha um sistema superado e hoje em vigor apenas em países cujo regime político que não nos serve de modelo.

De todo modo, Barroso tem direito a ter sua própria posição e defendê-la, a partir das razões que enxerga para isso. Creio também que seja razoável que a Justiça Eleitoral, enquanto órgão responsável pela execução das eleições, seja ouvida.

O que não se pode admitir, no entanto, foi o modo agressivo como por vezes se manifestaram e a forma como em algumas ocasiões fomentaram a polarização e radicalização do debate. O que se espera de órgãos públicos quando participam de discussões legislativas é que qualifiquem a argumentação com dados, sejam ponderados e sóbrios, além de exemplarmente respeitosos com todas as opiniões.

O que ocorreu no caso, no entanto, foi basicamente o oposto.

Barroso foi responsável por afirmações como: adotar o voto impresso seria como “comprar um videocassete” ou “voltar ao orelhão”. O TRE do Paraná publicou em suas contas oficiais um vídeo associando o voto impresso à Idade Média. A peça é sem dúvida uma das coisas mais ridículas da história do serviço público.

O que há de comum em todas essas manifestações é não apresentar argumento algum, não qualificar o debate e simplesmente ofender as pessoas favoráveis ao voto impresso. Tal comportamento é, primeiramente, totalmente imoral, porque com isso o que se procura não é convencer pela razão, mas intimidar as pessoas a não manifestarem seu ponto de vista, tentando colocá-las em uma espiral do silêncio. É uma busca, portanto, de resfriar o exercício da cidadania por parte de quem discorda da posição de quem - temporariamente - ocupa funções no aparelho de Estado. A tentativa no caso era a de infligir o temor de serem associadas a ideias antiquadas ou retrógradas.

Ademais, o efeito imediato desse tipo de comportamento institucional é revoltar as pessoas e desgastar a autoridade das instituições, além de prejudicar sua imagem de imparcialidade. Ainda acaba-se por provocar reação igualmente acalorada e polarizada, fazendo o debate perder qualidade e racionalidade.

Não bastasse, as afirmações tanto de Barroso quanto do TRE são simplesmente infundadas e vazias, visto que o comprovante impresso do voto consubstancia tecnologia mais moderna do que a das urnas utilizadas no Brasil, e é de geração posterior. Esse modelo mais atual e arrojado mantém, a meu ver, em larga medida todos os benefícios do voto digital (velocidade de apuração e praticidade no voto), mas provê o benefício de criar uma base de registro dos votos distinta daquela gerada apenas pelo software, permitindo eventual cotejo entre ambas e com isso incrementando a segurança na votação. Não só. Por ser o comprovante físico muito mais simples de compreender do que o complexo software da Justiça eleitoral, ele também permite que o cidadão comum acompanhe de modo mais pleno o processo público de votação.

As manifestações deslocadas de Barroso, no entanto, não pararam por aí. Eis algumas outras falas do ministro ao tratar da proposta de voto impresso:

Por fim, o ministro alegou que o país teria “um desejo imenso de judicialização”. Além de, novamente, inexistir base empírica para essa afirmação a partir da experiência dos países que adotam as urnas de segunda geração, é curioso que um forte defensor do ativismo judicial como Barroso faça esse tipo de alegação. Ao que tudo indica, os ministros gostam muito de judicialização, porém apenas nos casos em que eles não compõem o órgão administrativo cujo trabalho foi judicializado. O STF hoje trata de temas como cavernas, vacinação, operações policiais em favelas do Rio de Janeiro e até Copa América, mas tratam como muito preocupante a judicialização em face da atuação administrativa do TSE.

Realmente, a judicialização excessiva é preocupante. E uma vez instituído o comprovante impresso do voto, teremos de pensar em mecanismos que impeçam o abuso da litigância. Contudo, ponto número um: os ministros precisam perceber que essa deve ser uma preocupação geral e não apenas para os órgãos em que eles exercem função administrativa. Hoje o STF permite o abuso da litigância política irresponsável, o que já foi até reconhecido pelo ex-Ministro Marco Aurélio quando ainda na ativa. Ponto número dois: a experiência internacional de países que adotam aquele sistema demonstram que é perfeitamente possível evitar essa consequência.

A partir da análise desse conjunto de alegações, torna-se curioso que Barroso recentemente tenha dito que teria atuado “didaticamente para dizer que uma causa que precisa de ódio e teoria conspiratória não é uma causa boa”, visto que ao que tudo indica não acreditava que a manutenção das urnas pudesse sagrar-se vitoriosa sem manifestações infundadas e descontextualizadas como as apontadas acima.

Ironicamente, o Ministro manifestou-se nos últimos dias elogiando as eleições ocorridas em Portugal, onde o voto é feito mediante cédula de papel, modalidade aliás comum na Europa, e que Barroso passara os últimos meses criticando de modo desproporcional. Embora o contexto de Portugal seja diferente, em virtude do tamanho reduzido do país e de seu colégio eleitoral, a fala não deixa de ser inusitada.

Para não ser injusto, reconheço que o Presidente do TSE forneceu, ao menos, uma informação concreta e útil, acerca do custo de implementação do novo modelo. Argumento relevante, sem dúvida, mas que não pode ser absolutizado, principalmente porque uma saída de consenso com substituição paulatina das urnas atuais é perfeitamente possível de ser implementada.

Frise-se que em discurso recente, Barroso voltou a apostar em falas inapropriadas e deslocadas.

O Presidente do TSE alegou que "informações sigilosas [do TSE] que foram fornecidas à Polícia Federal para auxiliar uma investigação foram vazadas pelo próprio presidente da República em redes sociais, divulgando dados que auxiliam milícias digitais e hackers de todo o mundo que queiram tentar invadir nossos equipamentos".

A manifestação, primeiramente, configura indevido prejulgamento do Ministro em relação aos fatos sob investigação, visto que uma das alegações defensivas é exatamente a de que inexistia sigilo no inquérito divulgado - o que teria sido confirmado pelo delegado responsável pelo caso -, e os autos, portanto, teriam sido entregues sem restrições ao Poder Legislativo para subsidiar a tramitação da PEC do Voto Auditável.

Ademais, Barroso alegou que parte das informações divulgadas colocariam em risco o sistema do TSE. As afirmações, no entanto, foram feitas sem provas e de forma vaga, sem demonstração específica de qual informação do inquérito seria tão crucial. Trata-se de alegação excessivamente grave para ser apresentada de modo abstrato.

Por ora, a alegação de quebra de sigilo e a respectiva investigação serviram até agora apenas para desviar a atenção do debate público de fenômeno que me parece muito mais relevante e preocupante: a invasão duradoura do sistema do TSE em ano eleitoral, o que o engenheiro especializado em urnas Carlos Rocha afirmou, em entrevista à Rádio Jovem Pan, configurar situação extremamente grave.

Ainda, em parte de sua fala, Barroso voltou a criticar a possibilidade de que pessoas pudessem sair da cabine de votação com um comprovante físico de seu voto. Ocorre que isso é pura desinformação, uma vez que isso jamais foi sequer proposto. Os projetos que tramitaram no Congresso Nacional sempre previram o depósito do comprovante em urna indevassável.

Por fim, cabe lembrar que ainda em 2021, ao final do período de análise da PEC do Voto Auditável, o TSE passou a abrir investigações e inquéritos contra os principais defensores do projeto, alegando que o fato de pessoas apontarem as razões pelas quais não confiam nas urnas e acreditam haver fraude configuraria “prática de abuso de poder político e econômico, uso indevido de meios de comunicação social, corrupção, fraude e propaganda eleitoral antecipada”.

O enquadramento, entretanto, é nitidamente artificial. Criticar urnas em redes sociais pessoais fora do período eleitoral não configura nem de longe uso de mecanismos indevidos para conquista de votos. Por isso, o uso de instrumentos próprios de tutela da lisura eleitoral, a fim de calar críticas ao sistema de urnas do TSE configura patente desvio de finalidade. Além disso, parece-me gravíssima a utilização de mecanismos de investigação eleitoral cujo efeito é intimidar um debate legislativo em curso.

Eu teria dificuldades para imaginar algo menos iluminista.

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