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Suprema Corte dos EUA toma decisão que facilita aborto
Sede da Suprema Corte dos EUA.| Foto: Bigstock

Como bem pontuou Cal Thomas, em artigo no qual comentou a recente decisão da Suprema Corte americana em defesa da liberdade religiosa: “em sociedades totalitárias, os governos suprimem as igrejas e o culto. A razão é que ditadores acreditam que os cidadãos devem adorá-los como a maior autoridade existente, e não alguma outra autoridade que lhes seja superior, a qual eles veem como uma ameaça ao seu poder e a sua posição”.

É um fato. E a liberdade religiosa está cada vez sob maior assalto. Os fatos que demonstram isso são muitos.

No Brasil especificamente, vários grupos evangélicos e outros segmentos religiosos vêm sendo alvo de perseguições judiciais por infundadas acusações de “homofobia”, sem que tenha havido qualquer promoção de ódio, mas apenas exposição de juízos morais à luz de suas convicções filosóficas e religiosas. Frise-se que o direito de manifestá-las, além de ser um direito humano básico, foi expressamente reconhecido pelo STF na ADO 26. No trecho do julgamento em que trata da liberdade de expressão, o voto condutor foi expresso no sentido de que haveria “discurso de ódio” apenas nas "exteriorizações e manifestações que incitem a discriminação, que estimulem a hostilidade ou que provoquem a violência (física ou moral) contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.”

Entre as teses fixadas por ocasião do julgamento, a segundo delas é patente: “2. A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.

Nada disso, no entanto, tem impedido lideranças religiosas de serem alvo de assédio e perseguição judicial.

Esse pesado autoritarismo anticlerical tende a aumentar, caso se confirme a eleição de Biden nos Estados Unidos.

De todo modo, houve motivos para comemorar nos últimos dias. Algumas Cortes de Justiça, mundo afora, saíram em defesa da liberdade religiosa, derrubando decretos que concediam tratamento desproporcionalmente injusto a locais destinados ao culto durante a pandemia do coronavírus.

O caso mais famoso ocorreu nos Estados Unidos. Conforme noticiou a Gazeta do Povo, em 26 de novembro:

"A Suprema Corte dos Estados Unidos acolheu nesta quarta-feira (25) o pedido de organizações católicas e judaicas e proibiu as restrições, impostas pelo governo do estado de Nova York, que limitavam o número de pessoas em locais de culto devido à pandemia de Covid-19."

"Cinco dos nove juízes da corte votaram pelo fim das limitações, sinalizando uma mudança de postura da Suprema Corte sobre o assunto com a chegada da juíza conservadora Amy Coney Barrett. Até então, o máximo tribunal de justiça dos EUA vinha delegando às autoridades locais as decisões sobre restrições relacionadas à pandemia, inclusive em questões envolvendo religião."

Poucos dias depois, a Suprema Corte americana estendeu os efeitos da decisão para o Estado da Califórnia.

Queremos aqui aprofundar nesse caso, visto que ele reafirma princípios elementares que constituem pilares civilizatórios da nossa sociedade, assim como da sociedade americana.

Vejamos.

Primeiramente, para entender qualquer provimento judicial é necessário compreender o pedido apresentado pela parte autora. No caso relativo ao Estado de Nova Iorque, o pleito foi apresentado pela Diocese da Igreja Católica no Brooklyn. O réu da ação foi o Governador do Estado de Nova Iorque, Andrew Cuomo (o qual teve um dos piores desempenhos no combate à COVID, mas é constantemente preservado pela mídia com viés anti-Trump).

O governador havia editado a Ordem 202.68, a qual impunha um limite de pessoas que poderiam estar presentes dentro de prédios destinados ao culto, de 10 a 25 pessoas a depender da região territorial. A ordem não levava em conta o tamanho do prédio. Além disso, e aqui entra um dos pontos mais relevantes: aplicava essa limitação às igrejas mesmo que alguns estabelecimentos não religiosos estivessem funcionando normalmente, sem qualquer limite de ocupação na mesma região territorial. Ou seja, o tratamento concedido aos estabelecimentos religiosos era mais gravoso do que aquele concedido a parcela dos negócios seculares.

Em razão desses fatos, a Diocese do Brooklyn ajuizou ação perante a justiça de Nova Iorque alegando ofensa à primeira emenda da Constituição americana, a qual assegura a liberdade religiosa. A Diocese argumentou que a Primeira Emenda impede que instituições religiosas sofram um tratamento mais restritivo do que os negócios seculares. A Corte estadual reconheceu que a Igreja Católica havia sido exemplar no combate à COVID e que não registrara qualquer surto de casos após a reabertura das igrejas. A despeito desse fato, julgou válido o decreto do governador, adotando uma posição de deferência às ordens estatais, em virtude do quadro de crise sanitária.

A Igreja Católica, então, recorreu à Suprema Corte, apresentando duas questões:

1) Se as disposições da Ordem Executiva 202.68, que limitam o comparecimento em estabelecimentos de culto ao máximo de 10 a 25 pessoas, inobstante permitam que várias empresas seculares operem sem quaisquer restrições de capacidade, violam a Cláusula de Livre Exercício de Religião previsto na Primeira Emenda; e

2) Se os órgãos judiciais que examinaram a questão erraram ao concluir, de acordo com os precedentes dos casos Jacobson v. Massachusetts, 197 U.S. 11 (1905), e South Bay Pentecostal Church v. Newsom, 140 S. Ct. 1613, 1613-14 (2020), que durante a pandemia do coronavírus dever-se-ia adotar uma posição de deferência mesmo quando lesado um direito fundamental como o de liberdade de religião, previsto na Primeira Emenda à Constituição americana.

O pedido foi o de concessão de um writ of injunction, instituto semelhante ao mandado de segurança brasileiro. No caso, o pleito era para concessão de uma ordem mandamental (ou seja, uma ordem para fazer algo e não para pagar uma indenização), no sentido de que a restrição ilegal cessasse imediatamente, até que o caso venha a ser julgado em definitivo pelas instâncias ordinárias. Tratava-se, portanto, de ordem temporária e de urgência (temporary injunctive relief).

Concomitantemente à ação da Diocese Católica, uma instituição judaica (Agudath Israel of America) ingressou com pedido com os mesmos fundamentos, razão pela qual ambas as ações foram julgadas conjuntamente. No caso da instituição judaica, ela ainda afirmou que o governador manipulou o desenho das regiões (gerrymandered) de modo a assegurar que comunidades de judeus ortodoxos ficassem dentro de locais sob “bandeira vermelha”, sofrendo o tratamento mais restritivo previsto no decreto.

Três juízes da Suprema Corte apresentaram seu voto na forma per curiam, isto é, sem a identificação de cada um dos julgadores. Em latim, a expressão per curiam significa “pela Corte”, de modo que decisões assim englobam os juízes que não apresentem votos em separado, sejam votos que concordam na conclusão e apresentam novos fundamentos (concurring opinion), sejam votos que discordam do voto vencedor (dissenting).

No caso concreto, o voto per curiam abarcou a manifestação dos juízes Clarence Thomas, Samuel Alito e da nova juíza Amy Coney Barret. Apresentaram votos concordantes e em separado os juízes Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh. Todos eles foram indicados por presidentes do Partido Republicano, o qual me parece mais sensível às liberdades fundamentais e à liberdade religiosa de modo específico. Por outro lado, foram votos vencidos os juízes: Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan, além do Presidente da Corte, o juiz John Roberts. Com exceção deste último, os demais foram todos indicados por presidentes do Partido Democrata.

O voto per curiam consignou que a concessão da ordem urgente dependeria da presença de três requisitos: probabilidade de que o direito invocado houvesse sido ofendido e, portanto, que haveria boas chances de vitória na ação principal (claims are likely to prevail); que a denegação da ordem provocaria um dano irreparável (irreparable injury); e, que a concessão da ordem não lesionaria o interesse público (not harm the public interest). É curioso para alguém do Brasil, formado na tradição da civil law; porém, nos Estados Unidos, por se tratar de um país da tradição da Common Law, o fundamento utilizado para determinar os requisitos foi um precedente judicial: caso “Winter Versus Natural Resources Defense Council, Inc.”. No Brasil, requisitos dessa espécie, em regra, têm fundamento legal (por exemplo: o art 1º ou 7º, III, da Lei do Mandado de Segurança).

Quanto ao primeiro requisito, consistente na provável lesão ao direito invocado (direito à liberdade religiosa previsto na Primeira Emenda à Constituição), o voto per curiam asseverou que se uma norma não é neutra, ela precisa atender aos standards mais exigentes (strict scrutiny) para que seja válida. Ao submeter-se a tal nível de exigência, o decreto só seria constitucional se atendesse a um interesse impositivo (compelling interest) e adotasse os meios menos restritivos (narrowly tailored).

Os juízes, no entanto, apesar de reconhecerem a presença de um interesse impositivo (no caso, a proteção à saúde e o combate à pandemia), julgaram que o decreto não era neutro e não era o menos restritivo possível. De fato, eles consideraram que como o decreto previa tratamento diferenciado e excessivamente restritivo para os prédios religiosos, ele não podia ser considerado neutro, tampouco atendia aos requisitos de constitucionalidade.

Frise-se que, segundo o decreto, nas zonas vermelhas, igrejas e sinagogas poderiam ter no máximo 10 pessoas. Mas serviços considerados essenciais, entre os quais acupuntura, áreas de acampamento, lojas de manutenção de bicicletas, fábricas de microeletrônicos, vendas de hardware etc., não possuíam limitação alguma. Nas regiões sob “bandeira laranja”, casas destinadas ao culto tinham limite de 25 pessoas, enquanto mesmo os serviços não essenciais poderiam decidir o limite de pessoas que aceitariam em seu interior. Durante a oitiva das testemunhas perante os órgãos de justiça do estado, um agente público de saúde reconheceu que uma grande loja em uma dessas regiões recebia centenas de pessoas todos os dias.

Em seu voto em separado (concurring opinion), o juiz Bratt Kavanaugh pontuou que “as restrições do Estado de Nova Iorque aos templos religiosos são não apenas severas, mas também discriminatórias”. Como a discriminação a locais de culto atinge a Primeira Emenda, o Estado teria de demonstrar uma “razão suficiente para a discriminação”. Elas teriam de ser absolutamente imprescindíveis. Contudo, não se comprovou razão alguma, sob o ponto de vista do interesse compulsório da saúde pública, capaz de justificar que pudesse haver centenas de pessoas em lojas seculares, enquanto templos tivessem sua capacidade limitada a 10 pessoas. Ele ainda registrou que “deferência judicial em uma emergência ou crise não significa uma completa abdicação da justiça”.

Quanto ao segundo requisito, consistente no dano irreparável, o voto per curiam citou o caso “Erold Versus Burns, segundo o qual “a perda das liberdades da Primeira Emenda, mesmo que por um mínimo período de tempo, constitui inquestionável e irreparável dano”.

Por fim, no tocante ao terceiro requisito, o voto per curiam afirmou que os réus não demonstraram que algum interesse público seria prejudicado pela derrubada do decreto. Como dito, não há prova de que submeter templos religiosos às mesmas regras aplicáveis a estabelecimentos seculares prejudique a saúde pública.

O voto ainda consigna, em trecho marcante: “mesmo em uma pandemia, a Constituição não pode ser posta de lado e esquecida”. É uma lição e tanto para o Brasil.

O juiz Neil Gorsuch, sobre quem já escrevemos um artigo, apresentou um voto em separado (concurring vote) absolutamente memorável.

O voto é aberto com as seguintes palavras:

  • O governo não é livre para desrespeitar a Primeira Emenda em tempos de crise. No mínimo, aquela Emenda proíbe oficiais do governo de concederam tratamento pior à prática religiosa em comparação com atividades seculares, a menos que estejam perseguindo um interesse compulsório e usando os meios menos restritivos. Veja o caso Church of Lukumi Babalu Aye, Inc. Versus Hialeah. Contudo, até pouco tempo, durante a pandemia do COVID, certos Estados parecem ter ignorado esses princípios há muito tempo estabelecidos”.

Relembrou que estabelecimentos reputados essenciais, como lojas de bebidas ou hardware, e serviços como acupuntura, advocacia, contadores e agentes de seguro, receberam tratamento muito mais benéfico do que os templos, sem que qualquer razão sanitária motivasse o discrímen.

Disparou, então, duramente:

  • A única explicação para tratar os locais religiosos de forma diferente parece ser um julgamento de que o que acontece lá simplesmente não é tão 'essencial' quanto o que acontece nos espaços seculares. Na verdade, o governador é notavelmente franco sobre isso: em seu julgamento, roupa lavada e bebidas alcóolicas, viagens e ferramentas, são todos 'essenciais', enquanto os exercícios religiosos tradicionais não são. Esse é exatamente o tipo de discriminação que a Primeira Emenda proíbe.”
  • Mas não se trata de um problema isolado. Nos últimos meses, outros governadores emitiram decretos semelhantes. Num estalar de dedos, eles afirmaram o direito de privilegiar restaurantes, lojas de maconha (aqui o juiz se refere aos Estados em que o comércio de maconha é liberado) e cassinos em vez de igrejas, mesquitas e templos. Veja o caso Calvary Chapel Dayton Valley v. Sisolak, 2020, (GORSUCH, dissenting). Em muitos lugares, por muito tempo, nossa primeira liberdade parece ter caído em ouvidos moucos.

Gorsuch afirmou que já durante muito tempo a Suprema Corte aceitou esse tipo de abuso, mas “ainda que a Constituição tenha tirado férias durante a pandemia, esse descanso não pode se tornar um ano sabático”.

Como último ponto da análise do caso americano, salientamos que o juiz Gorsuch ainda se perguntou sobre por que teria ocorrido a leitura equivocada da jurisprudência da Corte, no sentido de que ela determinaria uma posição sempre deferente aos decretos governamentais nos períodos de crise, permitindo uma “autoridade arrogante que ofusca a Constituição durante uma pandemia? No final, posso apenas supor que grande parte da resposta está em um impulso judicial para ficar fora do caminho em tempos de crise. Mas se esse impulso pode ser compreensível ou mesmo admirável em outras circunstâncias, não podemos nos esconder quando a Constituição estiver sob ataque. As coisas nunca vão bem quando fazemos isso.”

Pois bem. Encerrado o exame do caso americano, por derradeiro, lembramos que também na Suíça, a Câmara Constitucional do Cantão de Genebra derrubou decreto que fechava templos religiosos, embora mantivesse abertos outros estabelecimentos civis. Um dos advogados que atuou no caso, Dr. Samuel Sommaruga, declarou:

  • “'As restrições aos direitos fundamentais devem ser sempre proporcionais e comprovadas como verdadeiramente necessárias. Dado que outras reuniões públicas ainda são permitidas, não vemos a proporcionalidade desta restrição – ela visa grupos religiosos de forma discriminatória. É por isso que decidimos contestá-lo no tribunal. Temos esperança de que os tribunais acabem por reconhecer isso como uma violação dos direitos fundamentais e que seja encontrada uma solução que proteja os direitos de todos os cidadãos da Suíça e sirva como referência para o resto da Europa'”.
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