Matéria do The Guardian denunciava as atividades do Batalhão Azov de recrutamento infantil.| Foto: Reprodução do Youtube/The Guardian
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A maior parte da mídia tradicional, em especial a escrita, degringola a olhos vistos. Muito já se analisou a idiotia da classe jornalística. E, embora esse seja um quinhão importante para explicar a degringolada, insistir nele deixa muita coisa de fora. Li este interessante artigo traduzido do espanhol e fiquei pensando na cilada em que o jornalismo profissional se meteu com as redes sociais: o leitor de hoje fica zapeando as notícias pela tela do celular e se contenta com as manchetes. Assim, não clica para ler a matéria e sequer se depara com a paywall convidando-o a assinar. Pode ser que o smartphone tenha reduzido a nossa capacidade de atenção.

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Mas há outra coisa que desanima o leitor, que é uma estranha uniformidade sincronizada nas notícias, de modo que quem viu um, viu todos. Por exemplo, no dia 6 de junho o perfil da Folha de S. Paulo no Twitter noticiou: “Símbolos nazistas entre militares da Ucrânia alimentam discurso russo.” A gente olha e pensa: “Ah, bom, o problema é alimentar o discurso russo, não é o endosso do Ocidente a um exército que sabidamente conta com neonazistas assumidos.” Pois bem. No dia 7 de junho, é o perfil do Estadão que anuncia: “Símbolos nazistas ostentados nas linhas de frente da Ucrânia reforçam retórica de guerra de Putin.” Outra vez, o fato noticiado não é haver simbologia nazista explícita no exército ucraniano, mas sim o reforço da versão de Putin. Se os neonazistas não fossem explícitos, tudo bem.

Nessa hora, pegamos o nosso chapéu de alumínio e pensamos que há alguma espécie de urdidura macabra por trás da uniformidade das notícias. Mas, como eu posso abrir os links dos dois, a urdidura parece bem mais trivial: ambos os jornais paulistas deram o mesmo texto com títulos diferentes. Tratava-se da matéria do New York Times publicada dia 5 de junho, intitulada "Símbolos nazistas na linha de frente ucraniana evidenciam questões espinhosas da História", de Thomas Gibbons Neff. Explica-se então a coincidência: ambos os jornais têm parceria com o New York Times. O Globo também dera a matéria com outro título, e o Valor repercutira. Assim, muito da sincronicidade aparente se deve ao fato de os maiores jornais brasileiros terem parceria com o New York Times.

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Mas isso não mata o assunto. Os leitores de manchete – que são muitos – têm a impressão incorreta de que se trata de um problema pontual. Sabe-se lá como, os símbolos nazistas apareceram no front ucraniano. Os que conseguirem ler a matéria, porém, verão que nenhum jornalista do New York Times foi lá averiguar o problema do neonazismo; o Ministério da Defesa é que estava tuitando fotos de militares com símbolos nazistas.

Muito da sincronicidade aparente se deve ao fato de os maiores jornais brasileiros terem parceria com o New York Times. Mas isso não mata o assunto

Na verdade, o problema do neonazismo na Ucrânia é literalmente notícia velha. Em 2014, ocorreu o Euromaidan, que desestabilizou o país. Forças paramilitares pró União Europeia depuseram o presidente democraticamente eleito, assumiu um interino e depois houve eleições. Entre essas forças paramilitares estava o Batalhão Azov, notoriamente neonazista. Embora o nazismo clássico seja antieslavo, no caso da Ucrânia o sentimento antieslavo dos nazistas foi convertido num sentimento antirrusso. A Grande Fome causada pelo georgiano Stálin foi interpretada como uma guerra étnica a ser descontada nos cidadãos de língua russa que nem eram nascidos –mais ou menos como pedir que brancos pobres nascidos hoje paguem pelo tráfico de escravos africanos.

A situação é tanto mais complicada porque na Ucrânia existem áreas de população de língua russa, os chamados "russos étnicos". O governo pós Euromaidan adotou medidas contrárias à população de língua russa – proibindo escolas, por exemplo. Ainda em 2014, portanto, aconteceram os referendos de Donetsk e Lugansk, segundo os quais as populações queriam ter repúblicas autônomas. Nem o governo russo, nem o ucraniano reconheceram os resultados, e as negociações andavam até estourar a guerra. E agora, há meses atrás, Zelensky ampliou a perseguição aos russos até a seara religiosa, a ponto de acabar atingindo a fé da maioria dos seus compatriotas: ele propôs que a Igreja Ortodoxa fosse banida! Zelensky é judeu; os Azov são neo-pagãos; a maioria da população (seja russa ou ucraniana) é ortodoxa.

Desde 1448, os cristãos ortodoxos das atuais Rússia e Ucrânia têm como maior autoridade espiritual o Patriarca de Moscou. Antes era o de Constantinopla, na atual Turquia. Em 2019, criou-se a toque de caixa uma Igreja Ortodoxa da Ucrânia, com um Patriarca de Kiev, com o fito de desvincular de Moscou a religião da maioria da população. Grosso modo, é como se inventassem no Brasil a Igreja Católica Apostólica Brasiliense para banir a Igreja Católica Apostólica Romana porque o Papa é extremista, e em seguida ainda dissessem que não há perseguição a católicos, só a romanos extremistas. Então o que há na Ucrânia é perseguição étnica e religiosa perpetrada por um Estado com um batalhão neonazista, com uma porção de democrata batendo palma porque Pútin é mau.

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Os regime ucraniano pós Revolução era corrupto e extremista. Agora é bom. Até anteontem Deltan e Moro eram heróis da democracia que. Agora descobrimos que houve um erro de CEP, e que Deltan e Moro são abomináveis

Imagina se o Estado brasileiro faz com os ianomâmi um terço do que o Estado ucraniano faz com os russos étnicos. Imagina quantos Estados ocidentais e quantos organismos multilaterais não correriam para chancelar o referendo mais mal feito que propusesse a criação de um Estado ianomâmi…

Outra coisa comum de aparecer na imprensa antes era a corrupção do novo regime ucraniano. De repente, sumiu. Zelensky virou um santo que luta contra Putin, súbito convertido no Hitler 2.0.

Insisto na questão ucraniana, porque ela mostra em nível ocidental uma amnésia seletiva, uma troca de papéis de vilões e mocinhos. Os regime ucraniano pós Revolução era corrupto e extremista. Agora é bom. Não só para o New York Times, mas para todo o mundo ocidental que o replique acriticamente. E esse padrão coincide com outra coisa que nos deixou todos loucos: a cobertura da pandemia. Aquilo que era desinformação e teoria da conspiração de gente doida – tal como a origem laboratorial do vírus – é hoje reconhecido pela grande mídia e tratado como coisinha à toa. Quem questionasse a eficácia e a segurança da vacina inovadora feita às pressas só podia ser doido – mas agora pede-se que tomemos doses de reforço infinitas, ao tempo que se reconhece pública e oficialmente a possibilidade de ter problemas cardíacos.

De volta à seara política, mas indo para o âmbito nacional, até anteontem Deltan e Moro eram heróis da democracia que, coadjuvados por ministros como Barroso e Fachin, lutavam bravamente contra a corrupção por meio de uma combinação entre Judiciário e MP. Agora descobrimos que houve um erro de CEP, que Lula não é tão mau assim, e que Deltan e Moro são abomináveis. De coadjuvantes, os ministros do Supremo passaram a protagonistas na defesa da democracia, coadjuvados por MP (sem Deltan) e PF.

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A produção de notícias é altamente centralizada. E se é altamente centralizada, é fácil de ser manipulada com propósitos espúrios, porque quem mexer no núcleo garante a redistribuição

Poderíamos ficar ad infinitum fazendo, por assim dizer, uma genealogia das notícias para chegar às agências e veículos que todos copiam. Fazendo isso, concluiríamos que a produção de notícias é altamente centralizada. E se é altamente centralizada, é fácil de ser manipulada com propósitos espúrios, porque quem mexer no núcleo garante a redistribuição. Assim sendo, é de se perguntar: quem é que decide, lá no começo, quais são os slogans e as narrativas? Porque alguém decide.

Nos EUA, os exemplos de viés na mídia abundam. O primeiro caso gritante talvez tenha sido o abafamento do escândalo do laptop de Hunter Biden em plena eleição presidencial. Ao que se podia concluir, o filho do futuro presidente era um drogado que traficava influência na Ucrânia. E a coisa continua. Segundo informou Tucker Carlson nesta semana, um whistleblower divulgou uma gravação em que Hunter Biden trafica influência na China. Desta vez, nem escândalo houve. Houve silêncio, exceto por um artigo de opinião publicado no New York Times em que Joe Biden é apresentado como um exemplo de pai que ama incondicionalmente o filho drogado. O título do vídeo de Tucker soa familiar ao brasileiro: “A guerra pela democracia faz a ditadura.” Recomendo fortemente o vídeo, do qual há uma versão legendada em português.

No Brasil, vimos um discurso uniformizado sobre a infalibilidade das urnas eletrônicas e uma defesa bastante curiosa da democracia, que lembra a frase do Presidente Figueiredo sobre a abertura: “Quem for contra, eu prendo e arrebento”. As autoridades prendem, o preso pode sair de cadeira de rodas, ou pode não sair e ficar esperando pra ser julgado em lote, ou pode nem esperar julgamento porque não sabe de que é acusado. É tudo pela democracia.

Na semana passada, o jornal inglês Financial Times deu uma matéria intitulada “A discreta campanha dos EUA para defender a eleição brasileira”. O jornal inglês “conversou com seis agentes ou ex-agentes dos EUA envolvidos na operação, bem como com várias figuras-chave das instituições brasileiras, para montar o quebra-cabeça da maneira como o governo Biden se envolveu naquilo que um ex-agente da elite do departamento de Estado chama de uma campanha de mensagem ‘muito atípica’ nos meses anteriores à votação, usando meios públicos e privados.” Se você não entende inglês recomendo o dossiê de Kim Paim sobre a matéria, que traz ainda outras fontes.

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Por aí se vê mesmo que a grande mídia quer nos deixar malucos. Afinal, só malucos acreditam que as autoridades ungidas por ela não são benignas e que o deep state dos EUA possa, de alguma maneira, querer o mal do Brasil. E ser de direita é repetir: EUA, bom. China e Rússia, mau.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]