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defesa da democracia
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, durante sessão por videoconferência.| Foto: Felippe Sampaio/SCO/STF

Bom é quando o noticiário está tedioso. Até pouco tempo atrás, os escritores que escrevem em jornal precisavam de assuntos e polêmicas, de modo que tivessem muito assunto para muitos textos. Agora é diferente: vai que aquele assuntão aparece. Um assunto do qual não se pode escapar, pois é o elefante na sala. Mas aí tem cada decisão do Supremo (Tribunal Federal), cada sentença esquisita dada por juízes ativistas após processo movido por procuradores ativistas, que o melhor mesmo é não acontecer nada, nada de nada, de modo que não haja o que comentar. Agora, mesmo, cabe apontar que não sou eu, uma leiga, que digo que os procuradores e a juíza são ativistas; foram os especialistas ouvidos pela Gazeta que assim disseram. Estou seguindo a ciência, os especialistas. Se o MP quiser me processar por esta coluna, processe antes os especialistas ouvidos pela Gazeta. Talvez o certo mesmo seja acabar com todas as colunas de opinião, já que opiniões são fake news exceto quando respaldadas por especialistas. Em vez disso, o judiciário irá apontar, democraticamente, especialistas para ocuparem as ex-colunas de opinião. E em vez de opinião, os especialistas emitiriam um boletim da Verdade. Precisa de boletim mesmo, porque toda hora muda.

Por isso, como eu dizia, é melhor quando o noticiário está quieto. Não havendo o que comentar, não há risco de se deparar com um procurador à porta, nem com um mandado de prisão expedido por um juiz do Supremo (Tribunal Federal). Não precisaria nem escrever receita de bolo. Eu poderia ficar só lendo e resenhando.

Mas o noticiário dos últimos dias não ajudou.

O Supremo salvou a democracia este fim de semana

Veja-se por exemplo a cidadã que está caminhando, caminhando, caminhando na terra batida beira do rio para gastar o almoço feito em área remota sem sinal de telefone. A cidadã chega a um ponto aprazível com banquinhos, pega o celular já com sinal e descobre que o STF tuitou sobre uma prisão. Diz o texto: “Por haver provas de autoria dos crimes, a Polícia Federal indicou a necessidade da prisão temporária, ocorrida nesta sexta (22). Liberdade de expressão não é liberdade de destruição da democracia, das instituições e da dignidade e honra alheias. Compartilhe a verdade”. Prontamente compartilhei a verdade, já que o que o Supremo diz ser a verdade é a verdade.

Quem foi preso? Não há como saber pelo tuíte. O que eu aprendi é que alguém estava, por meio da liberdade de expressão, destruindo a democracia. Era uma coisa tão urgente que a polícia falou que precisava prender e o Supremo, agilíssimo, mandou prender.

Ufa! Se o Supremo não tivesse agido, eu perigava estar fora de uma democracia agora. Como seria esse Brasil sem democracia que nos ameaça de maneira iminente?

O peixe estava bom!

É melhor eu contar que este domingo o peixe estava bom. Dar dicas de gastronomia, do que pedir num restaurante baiano. Dizer que o feijão que acompanha o peixe é o dito “feijão de azeite”, o feijão fradinho feito com dendê e camarão seco do qual gosto muito. Eu poderia falar de culinária e regionalismos, transformando-me assim numa colunista de turismo e culinária. Se eu quiser fazer jus à minha formação em humanas – eu sou dou-to-ra! – posso falar das mesmas coisas, mas sem aquele pensamento algo altruísta do escritor de viagens, que foca nas coisas que o leitor pode vir a ver com os próprios olhos, ou dá instruções para que ele decida quais pratos deve experimentar. Em vez disso, eu poderia focar em mim, no meu self e no meu ego, e transformar um almoço de domingo numa jornada de empoderamento feminino, citando Simone de Beauvoir. A cor local daria ocasião para sociologismos racialistas. Poderia relatar que vi muitos meninos brincando sem camisa ao ar livre, num dia ensolarado, e lastimar que eles são tão pobres, mas tão pobres, que não têm camisa para usar. Daí viria uma crítica social – e eu seria especialista, já que sou dou-to-ra.

De todo modo, acho que eu teria de pegar uns gatos pra criar. Eu faria crônicas falando da personalidade dos meus gatos. No mais, falaria mal de homem. Acho que vai dar tudo certo: vou reclamar de homem e falar de gato. E depois fluir de gênero, me considerando pessoa não-binárie. A Gazeta vai atrair muitos assinantes, pois as pessoas gostam de ler textos em que especialistas falam mal de homem (ou de branco, ou de hétero), bem de si próprias (ou próprios, ou própries), problematizam as relações sociais e, para aliviar tanta atividade cerebral, falam de assuntos fofos como gatos. Gostam mesmo? Não sei, acho que não. Se fosse assim, a imprensa não entrava em crise.

E a democracia?

Mas muito bem, a democracia quase acabava este fim de semana. Ainda bem que o Supremo a salvou! A ameaça à democracia era o vídeo de um homem desconhecido que incitava a botar os ministros do Supremo para correr, bem como Lula. Ele dizia que uma enigmática coletividade à qual ele pertence ia fazer e acontecer; ainda assim, pedia ajuda ao espectador para que o vídeo fosse viralizado. Nas Condições Normais de Temperatura e Pressão, eu diria que ele poderia ser denunciado pelo crime de ameaça. Ainda assim, creio que haja alguma diferença entre quem ameaça com condições de cumpri-la (por exemplo: tendo um refém em mãos) e uma ameaça que não passa de bravata. Esta última dá dor de cabeça, mas dificilmente bravata vira caso de polícia.

Para o Supremo salvar a democracia prendendo o sujeito que ameaça, o mínimo que eu esperava era que ele tivesse bombas no Planalto, que tivesse um plano para esfaquear algum dos alvos da ameaça – plano tão sofisticado que incluísse um álibi no Congresso. Na verdade, o próprio fato de ele ameaçar uma penca de ministros e uma penca de petistas é indício de que ele não tem plano nenhum: muita indefinição. Além disso, o Supremo apresentou como ameaça à democracia apenas as palavras. Não há menção a bombas nem nada.

Como o Supremo tem razão, resta concluir que aquele homem de celular na mão e língua solta poderia destruir a democracia apenas tagarelando. Ou talvez tagarelando na frente de uma câmera e espalhando videozinho na internet. Deve ser isso. Afinal, o Supremo acredita tanto no poder de um videozinho, que fez um vídeo-resposta no Twitter, repetindo as bravatas com os nomes trocados. Em vez de Lula ou Levandowski, entram “João” e “Luana”. O fim do vídeo manda espalhar essa. Eu, que não sou besta, retuitei. O texto acima do vídeo diz: “Imagine se essas ameaças fossem dirigidas a um amigo seu. Certos comportamentos não podem ser normalizados”.

Comportamentos a serem normalizados

De acordo, de acordo. Não devemos normalizar ameaças, nem dedo no nariz. Daí não se segue que eu tenha de chamar a Polícia Federal ao ver alguém limpando o salão. “Mas é que limpar o nariz não ameaça a democracia!!”, dirá o leitor supremo-democrático, revoltado. Pois é. Voltamos então à vaca fria, já que o noticiário não nos deixa em paz. Primeiro leio que um bravateiro solitário é uma ameaça à democracia. Logo em seguida, leio neste jornal a matéria sobre a ONG Anjos da Liberdade, que é amicus curiae do STF, cuja fundadora “presta serviços advocatícios há mais de duas décadas para lideranças do tráfico de drogas de diferentes organizações criminosas, em especial o Comando Vermelho – principal facção do Rio de Janeiro”. Um deputado estadual do Rio pede que se considere o conflito de interesses da ONG na sua atuação referente ao julgamento da ADPF das favelas – aquela canetada de Fachin que não deixa a polícia subir no morro. A ONG pede até os nomes dos policiais envolvidos nas operações!

Já pensaram se o Supremo combatesse o Comando Vermelho e o PCC com a mesma dedicação que destina às "fake news"? Vai ver é porque o CV e o PCC não ameaçam a democracia. Só pode ser isso. Agora resta o Supremo tuitar um videozinho explicando aos leigos o que é democracia.

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