O caso Mamãe Falei é uma oportunidade, também, para vermos que um certo setor da sociedade é incapaz de pensar a moralidade sem acudir para raça, gênero e sexualidade| Foto: Reprodução/Twitter.
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Embora às vezes sejam necessárias, guerras causam um imenso sofrimento às populações dos países envolvidos. O sofrimento menos contornável cabe à população masculina e jovem: os homens vão para a guerra cônscios de que podem perder a vida. À parte feminina da população cabe, na melhor das hipóteses, ver maridos, filhos e irmãos irem sem saber se voltam.

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Foi assim com os Estados Unidos na guerra do Vietnã. Rapazes deixavam o lar para perder a vida lá do outro lado do mundo. Quando a guerra não é lá do outro lado do mundo, as mulheres ficam sozinhas com seus filhos num país em frangalhos. Isso quer dizer, simplesmente, que na guerra muitas mulheres viram prostitutas capazes de se vender por um prato de comida que elas vão dividir com os filhos.

Não são prostitutas como essas que vemos em tempos de paz e abundância, chamadas de “mulheres de vida fácil”. Estas tiveram a prostituição como uma opção num leque de infinitas possibilidades. As da guerra, não: em geral, optaram pela prostituição quando a alternativa era a morte por inanição, seja a sua própria ou dos seus dependentes. Se aparecer um forasteiro de um país bom e estável, como o Brasil, ele será visto como salvação da lavoura.

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Assim, explicadinho, entende-se por que é tão feia a conduta de Arthur do Val na Ucrânia. É feio olhar para uma fila de refugiadas pensando em se aproveitar da pobreza delas, citando tim-tim por tim-tim os atributos físicos. Qualquer pessoa com um pouco de bom senso entenderá por que as mulheres nessa situação são fáceis: elas estão passando fome. A coisa fica tanto mais feia quanto pensamos que o deputado em questão foi para o Leste europeu posar de heroico e altruísta. (A propósito: alguém sabe se ele fez mesmo os coquetéis molotov que ele alega ter feito?)

É claro que um homem em boas condições pode se aproximar humanamente de uma refugiada, tratá-la bem e vir a casar com ela. Eu mesma só pude existir porque lá na Itália bombardeada pelos Aliados a minha bisavó achou quem a trouxesse junto com o meu avô para um país muito melhor, onde pela primeira vez haveria comida todo dia. Mas esse não é o tipo de intenção revelada por Arthur do Val: o bom é se aproximar das refugiadas porque elas estão pobres e são capazes de se sujeitar a qualquer coisa. De lamber o ** dele, como disse.

Imoral, mas ilegal?

Dito isso, surpreendeu-me a reação de Moro. Disse: “jamais comungarei com visões preconceituosas, que podem inclusive ser configuradas como crime.” Onde está o preconceito? Mulheres numa guerra costumam ser fáceis mesmo, e é precisamente isso que torna tão feia a conduta de Arthur do Val. E onde está o crime? Prostituição é crime na Ucrânia? Ele está falando como jurista brasileiro ou ucraniano?

Tento especular que crime Moro pode achar que Arthur do Val tenha cometido. Como ele é o queridinho dos liberais de modess, há de ser alguma coisa de mulher, negro e LGBTQUIABO. Como não tinha nada relativo à sopa de letras, cortamos o último. Machismo não é crime no Brasil, então corta esse também. Falta o racismo, que é crime. Será que é por Arthur do Val ter se deslumbrado com louras? Ao que tudo indica, ele queria uma loura bonita pra ostentar em São Paulo. Se for isso, não me parece que a lei contra o racismo tenha qualquer aplicação; do contrário, teríamos uma polícia de gostos. Além do mais, ficaria implícito que, sendo deusas de ébano numa guerra africana, estaria liberado.

Mas a frase seguinte, bem como as reações e pedidos de desculpas, indicam que o problema seria machismo: “Meu respeito incondicional às mulheres em geral e às ucranianas, em especial, porque além de todos os problemas diários enfrentados, precisam conviver com os horrores da guerra”, diz Moro. Como isso é um crime? Como? O mínimo que o Brasil espera de um juiz que desmontou o maior esquema de corrupção já desbaratado é que ele seja claro quanto aos tipos penais quando fala que alguém cometeu um crime. Do contrário, fica difícil crer que esse juiz tenha tido miolos para levar a cabo a Lava Jato.

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Machismo estrutural

Num tuíte, Moro revela sua adesão ao pensamento mais primário que reina atualmente. Ele diz que “mulheres em geral” têm o seu “respeito incondicional” por causa dos “problemas diários enfrentados”. Como é possível esse respeito incondicional e impessoal? Não importa o que uma mulher faça, ela tem o respeito de Moro por causa dos “problemas diários enfrentados”. Que problemas são esses? Homens não enfrentam problemas diários? Se homens enfrentam problemas diários, eu devo ter “respeito incondicional” por todos os homens? Como alguém não vê que isso é ridículo?

A tese de fundo é o do machismo estrutural. Mulheres – seja na França ou no Paquistão – são oprimidas pelo mero fato de serem mulheres. Assim, cabe ao homem ajoelhar no milho, ficar sinalizando virtude em tuítes e criando cota. Moro mostra ser uma mera Tabata de calças.

Arthur do Val pediu desculpas pelo machismo, mostrando que a coisa definitivamente foi tratada pelas lentes do identitarismo. Agora imaginemos: um deputado que gosta de efebos viaja até uma área em guerra e constata que os rapazes são fáceis porque pobres e topam tudo. Passa numa fila de rapazes com idade para consentir e presta atenção às seus atributos. Ele, que se gabou publicamente de viajar em missão humanitária, chega ao local da guerra e não para de falar na beleza dos refugiados, feliz por eles serem pobres.

O problema aí seria machismo? Nem há mulher envolvida, mas o problema seria o mesmíssimo que o de Arthur do Val: ir a uma área de guerra posar de virtuoso e humanitário enquanto quer tirar proveito sexual da vulnerabilidade das vítimas. Isso é feio, quer seja a vítima homem ou mulher.

Totalitarismo e cegueira moral

Preocupa o fato de haver tanta gente influente disposta a confundir imoralidade com ilegalidade. Se ambas as coisas forem uma só, a consequência é a transformação da moralidade em assunto de polícia. A humanidade vai precisar de um policial com cassetete para se certificar de que sejamos bons. Como alguém pode deixar de notar que isso é totalitarismo?

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O caso Mamãe Falei é uma oportunidade, também, para vermos que um certo setor da sociedade é incapaz de pensar a moralidade sem acudir para raça, gênero e sexualidade. Numa palavra, a incapacidade de pensar a moralidade com vistas no ser humano. Se tudo de imoral for contra mulheres, negros e LGBTQUIABO, por tabela, nada contra homens bracos cis hétero pode ser imoral, nem ilegal. E quando uma mulher branca ou um homem negro forem vítimas de uma injustiça, o juiz sempre poderá decidir se pesa mais a sua cor ou o seu sexo. Nós sabemos muito bem que nem todos os negros são negros para os identitários. Assim, um inimigo político negro pode ser considerado opressor por ser homem; uma inimiga política branca pode ser considerada opressora por ser branca etc.

Essa marcha identitária precisa ser parada.